O DEUS DO SPINOZA

 


– Cara?

– Oi.

– Você acredita em Deus?

– Acredito no Deus do Spinoza.

– Quem é esse cara, amigo seu?

– Improvável. É holandês, e viveu há quatrocentos anos.

– O que ele era, um padre?

– Um filósofo, da época do Descartes, aquele do “penso, logo existo”.

– E o que esse Deus do Spinoza tem de diferente?

– Ele é bem diferente do Deus de que se fala por aí...

– Em que sentido?

– Bom, para começar, Ele é simplesmente tudo o que está aí.

– Então, para Ele, eu e você somos Deus?

– Acho que podemos dizer que somos parte desse Deus.

– Mas isso não torna esse Deus muito diferente do Deus de que se fala por aí, né?

– Spinoza disse que tudo, absolutamente tudo, o que acontece na natureza, incluindo as ações dos seres humanos, de nós, emanam de Deus, da natureza divina.

– Eh, ficou na mesma...

– Mas talvez essa não seja a principal característica do Deus dele.

– E qual é, então?

– O Deus do Spinoza não é vingativo. Ele não fica te espionando a vida inteira como um big brother, não fica te julgando, nem vai mandar você para o purgatório ou para o inferno se cometer um pecadinho ou um pecadão.

– Ele é tão bonzinho assim?

O Deus do Spinoza nos fez absolutamente livres, não há nem castigos, nem prêmios, nem pecados, nem virtudes.

– Oba! Quer dizer que podemos sair por aí pintando e bordando?

– Podemos. Você é absolutamente livre para fazer da sua vida um céu ou um inferno. Depende de você.

– Porque depois da morte não haveria céu ou inferno...

– O Deus do Spinoza não deixa isso muito claro, se há ou não há. Tudo indica, porém, que não haveria. Porque Ele nos diz para vivermos como se não houvesse, para vivermos o aqui e o agora, como se esta fosse a nossa única oportunidade de aproveitar a vida, de amar, de existir. Assim, se não houver céu ou inferno, a gente terá usufruído plenamente da vida que Ele nos deu.

– Quer dizer então que quando partirmos dessa vida Ele não vai nos perguntar se nos comportamos ou não.

– Provável. No máximo, Ele vai nos perguntar se gostamos da nossa vida, se nos divertimos, do que mais gostamos e o que aprendemos.

– Não correremos o risco de, comportando-nos mal, passarmos a eternidade queimando no caldeirão do Belzebu...

– Esse Deus jamais criaria um lugar para queimar todos os seus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade.

– Não adianta nada ficarmos rezando fervorosamente a Ele pedindo coisas? Tipo, Ele não daria a mínima para os nossos problemas?

– Por aí. É tipo: “resolva você mesmo os seus problemas, cuide você mesmo da sua vida”. Como disse, faça dela o céu ou o inferno, como quiser. Saia pelo mundo e desfrute da vida, divirta-se, goze e aproveite de tudo o que eu fiz para você. Confie em mim e pare de me dirigir pedidos. Você vai me dizer como fazer meu trabalho? E pare de ter medo de mim. Não tema a mim. Tema a si pelos seus atos ou omissões. Eu não critico você, eu não julgo você, nem o incomodo, nem me irrito, nem o castigo. Sou puro amor.

– Inútil pedir perdão a Deus?

– Sim, porque não haveria nada a perdoar. Deus nos encheu de paixões, de prazeres, de sentimentos, de limitações, de incoerências, de incongruências, de necessidades, de livre-arbítrio, de dúvidas até. Como poderia nos culpar de algo que Ele pôs em nós? Como poderia nos castigar por sermos quem somos, se Ele mesmo nos fez?

– Igrejas, templos, mesquitas, sinagogas, mosteiros, centros espíritas, seriam tudo cascata?

– Seriam inúteis. O Deus do Spinoza não quer que criemos templos para que o adoremos, como se fossem a casa Dele. Para Ele, sua casa são as montanhas, os bosques, os rios, os lagos, as florestas, as praias, as pradarias, os serrados, os desertos, onde Ele viveria e expressaria amor por todos nós.

– A Bíblia é um livro de ficção?

– Sim, porque tais ditas escrituras sagradas não teriam nada a ver com Deus. É como se Ele dissesse: se você não pode me ler numa paisagem, num amanhecer, no olhar dos seus amigos, no canto dos passarinhos, num céu maravilhosamente estrelado, no desabrochar de uma rosa, no seu gato a dar piscadelas a você, no seu cão a vir feliz abanando o rabo quando você chega do trabalho, você não vai me encontrar em nenhum livro.

– E esse Deus, pois, não quer que o amemos sobre todas as coisas?

– Não, Ele não quer louvação, não quer adoração. Ele não é ególatra. Ao contrário, Ele se aborrece quando o louvam, o adoram. Se cansa quando agradecem a Ele por tudo, ou por qualquer coisa, por menor que seja. “Ah, graças a Deus que hoje é sexta-feira!”. Ele acha que, se você se sente grato, demonstre isso cuidando de você, das suas relações pessoais, da sua mulher, do seu marido, dos seus filhos, dos seus pais, da sua saúde, do mundo. Você se sente olhado, surpreendido? Então expresse sua alegria. Esse, sim, é um jeito de louvar a Ele.

– Ficar crendo nele, então, por tudo o que você diz, não teria serventia ou propósito nenhum, afinal...

– Exato, porque crer é supor, é imaginar, é adivinhar, é conjecturar. O Deus do Spinoza não quer que você fique acreditando nele, quer que você o sinta em tudo, quando abraça o seu irmão, quando beija a sua amada, quando dá de comer ao pobre, quando acaricia o seu cachorro, quando toma um banho de mar, quando vive, enfim. É como se Ele dissesse: você não precisa crer em mim, ou me bajular, para ter milagres na sua vida. Faça você os milagres, porque eu estou em você. Não me procure fora, que você não me achará, procure-me dentro de você. É onde estou, batendo em você.

– Maneiro...

– Bom, eu te contei tudo do Deus no qual acredito. Mas e você, cara? Afinal, acredita em Deus?

– Acredito no Deus do Spinoza.

– Quem é esse cara, amigo seu?...


Lui França, 2024.


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