LEITE CONDENSADO
Era uma vez um ditador chamado Gustav, que governava um pequeno país chamado Condensândia.
Gustav tinha 60 anos, mas se comportava como uma criança. Era birrento, brigão, boca-suja e egoísta. Odiava dividir suas espadas de brinquedo com os demais poucos membros da nobreza, todos descendentes ou parentes colaterais seus. Sua personalidade era uma mistura de insegurança e complexo de inferioridade.
Apesar de ter plena consciência dessas limitações psicológicas, Gustav governava Condensândia com mão de ferro. Ele não se importava com o bem-estar do povo; governava apenas para satisfazer suas próprias necessidades e desejos. Passava os dias trancafiado na corte, sempre protegido, e se recusava a ouvir as queixas e preocupações da população sofrida, que invariavelmente tentava, inutilmente, bater às portas palacianas para ser ouvida.
Uma única coisa dava motivação à vida de Gustav: o leite condensado.
Condensândia era o maior produtor da iguaria doce no mundo, o que era um orgulho para o ditador.
Gustav era viciado em leite condensado e não conseguia viver sem ele. Tinha latas e mais latas armazenadas em sua cozinha pessoal e espalhadas por todo o palácio. O tirano não hesitava em usar seu poder para garantir que sempre houvesse o suficiente para satisfazer sua voracidade. Isso lhe dava uma sensação de poder e controle, mas também aumentava ainda mais sua insegurança e instabilidade emocional.
Toda a produção da iguaria nacional estava sob a tutela do palácio real, providenciada pelos três filhos de Gustav: Flavius, Charles e Edward. Metade da produção era destinada ao palácio, e a outra metade era vendida a preço de ouro nas praças pelos filhos do ditador à pobre população, que, obviamente sem recursos para adquirir o valioso produto, via essa parcela acabar mesmo nas despensas da cozinha palaciana.
Certa noite, uma rebelião estourou no país, formada por mais de trezentos cidadãos insatisfeitos com a miséria e a opressão da tirania de Gustav. Organizados, não tiveram dificuldades para invadir o palácio do ditador e derrubá-lo do poder.
Gustav e seus três filhos foram imediatamente detidos, e todo o estoque de leite condensado foi apreendido.
Enquanto o produto era levado em charretes para fora das muralhas palacianas, destinado à distribuição entre a população famélica, o juiz Alexander, careca e de olhos esbugalhados, um dos líderes da revolução, montou um tribunal ali mesmo para decidir o destino do tirano.
— Gustav! — chamou Alexander com a voz retumbante. — Venha até aqui e enfrente seu julgamento!
Dois revoltosos armados escoltaram Gustav até um púlpito improvisado no centro do salão principal do palácio. A multidão reunida lançava olhares de desprezo e murmúrios de raiva ecoavam pelas paredes.
Alexander, com uma expressão séria, anunciou:
— Vamos conceder a Vossa Majestade o direito de defesa. Mas saiba que, ainda que seja convincente, isso apenas amenizará sua pena. A justiça será feita de qualquer forma.
Gustav, intimidado, hesitou em falar. O salão estava em silêncio absoluto até que alguém gritou, quebrando a tensão:
— Estou com você, mito!
Aquele único berro de apoio deu uma injeção de ânimo em Gustav, que começou a balbuciar:
— Er...bom...eu quero saber, acho que tenho o direito de saber, no tocante a isso daí, do que Vossa Excelência me acusa!
Parte da multidão começou a vaiar e a xingar o ditador. Alexander levantou a mão, pedindo calma.
— Vossa Majestade não faz mesmo a menor ideia? — o juiz apontou para os carregadores de leite condensado, que saíam do palácio.
Gustav arqueou uma sobrancelha e respondeu com desprezo:
— Isso?! Tá de brincadeira, né? Desde quando o povo se importa com esse meu... fetiche?
— Esse seu fetiche, Sir Gustav Único, está matando o seu povo de fome! — retrucou Alexander.
— Matando meu povo de fome? Desde quando? Zeros Um a Três, onde estão vocês, exijo uma explicação!
— Seus filhos já foram detidos e estão na masmorra. Ficarão lá até que o seu destino seja decidido esta noite.
Gustav bufou, incrédulo.
— Mas... eles estão fazendo o trabalho deles, não estão? Todo dia de manhã, o Flavius, que é o mais ajuizado, me presta contas das vendas de leite condensado em todo o reino. Sempre vendemos quase todo o estoque! Só o que sobra é que volta pro palácio.
Uma mulher na primeira fila gritou “mentiroso!” e foi seguida por um coro na mesma toada. Alexander passou um lenço na careca suada e fez novo sinal de calma.
— Além do mais — continuou Gustav, tentando soar razoável —, desde quando leite condensado serve para encher barriga? Fora a minha, claro. Se a moda pega, teríamos uma epidemia de diabetes e obesidade em todo o reino. E isso eu jamais admitiria! Depois dizem que não me importo com a saúde e bem-estar do meu povo! É o contrário!
O salão do palácio estava em alvoroço. O discurso de Gustav, ao invés de acalmar a multidão, inflamava ainda mais os ânimos. O juiz Alexander respirou fundo, tentando manter o controle da situação.
— Gustav, o povo de Condensândia vive na miséria enquanto você se esbalda em luxos e leite condensado! — Alexander disse com firmeza. — Essa não é a vida que eles merecem. Você precisa entender a gravidade dos seus atos.
Gustav deu uma risada nervosa, sem acreditar na seriedade da situação.
— Vocês são uns ingratos! Eu dei a vocês o maior orgulho do nosso país! Somos conhecidos no mundo inteiro, no mundo inteiro, pelo nosso leite condensado!
Nesse momento, um jovem conseguiu furar o cordão de guardas e subiu ao púlpito, colocando-se ao lado de Alexander e apontando o dedo para Gustav.
— Eu sou William Cake. E venho aqui para falar em nome de todos que você ignorou durante anos! Não queremos apenas leite condensado! Queremos justiça, dignidade e um futuro melhor para o nosso povo!
A multidão aplaudiu e vibrou com as palavras de William, e Gustav começou a perceber que a situação estava fora do seu controle.
— Justiça, dignidade e futuro, tá de brincadeira, né? Vocês realmente acreditam que são capazes de governar este país sem mim?
Alexander ergueu a mão para silenciar a multidão novamente.
— Vossa Majestade, Sir Gustav Único — disse Alexander com um tom solene —, este povo escolheu o caminho da liberdade. E é hora de você enfrentar as consequências dos seus atos. No entanto, considerando o seu estado mental instável e a sua evidente obsessão pelo leite condensado, propomos um acordo.
Gustav olhou surpreso, intrigado com a proposta.
— Um acordo? — ele repetiu, hesitante.
— Sim — respondeu Alexander. — Você será exilado de Condensândia, mas terá permissão para levar consigo uma provisão de leite condensado para o resto da sua vida. Em troca, você nunca mais retornará e permitirá que o povo construa um futuro sem sua tirania.
O salão ficou em silêncio, aguardando a resposta do ditador.
Gustav ponderou por um momento, olhando para a multidão que outrora o temia e agora exigia sua saída. A ideia de deixar tudo para trás era assustadora, mas a perspectiva de perder seu precioso leite condensado era ainda pior.
Finalmente, com um suspiro derrotado, Gustav assentiu.
— Aceito o acordo — disse ele, resignado.
A multidão explodiu em aplausos e gritos de alegria. William sorriu, aliviado, e Alexander declarou:
— Que assim seja! O povo de Condensândia se libertou das amarras da opressão e pode agora escolher seu próprio destino!
Gustav foi escoltado para fora do palácio, levando consigo seu estoque pessoal de leite condensado. Ele foi banido para uma ilha isolada, onde poderia viver seus dias em paz, longe das responsabilidades e do poder.
Enquanto isso, em Condensândia, o povo começou a reconstruir sua nação. William Cake tornou-se primeiro-ministro, e os cidadãos, finalmente livres, sonhavam com um futuro onde todos pudessem prosperar. E assim, a pequena nação floresceu, transformando-se em um exemplo de liberdade e justiça.
Anos mais tarde, rumores começaram a surgir sobre um misterioso produto vindo de uma ilha distante. Era um novo tipo de doce, tão viciante quanto o leite condensado, que começava a se espalhar pelo mundo. Diziam que tinha sido criado por um homem recluso, obcecado pelo sabor doce da vida, que encontrara na sua paixão por confeitaria uma nova maneira de exercer influência.
Gustav, mesmo no exílio, havia encontrado uma nova maneira de deixar sua marca no mundo. E enquanto Condensândia prosperava, o legado do ditador continuava a adoçar a vida de muitos, mas desta vez, sem causar fome ou miséria.
Lui França, 2024
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