O ACANHADO

 


Edinho ficava horas e horas em seu quarto desenhando, entre muitas outras figuras bizarras, alienígenas malvados e seus algozes super heróis estrelares, os amigos imaginários que ele criava na falta de amizades reais.

O filho único do seu Paulão e da dona Maria de Fátima era um menino de poucas palavras. Nunca se sabia o que passava por aquela cabecinha misteriosa, e em geral suas raras ações e reações verbais eram monossilábicas.

Por causa disso, até os cinco anos de idade era tido como um débil mental, mas quando numa bela manhã o menino, animadíssimo, baixou do seu quarto para mostrar todo orgulhoso aos pais uma reprodução impressionantemente fidedigna, a lápis de cor, da Mona Lisa, cujo original ele tinha visto pela primeira e única vez pela televisão na noite anterior, o filho virou um gênio. Esquisito, mas um verdadeiro prodígio.

Dona Maria de Fátima, a partir de então, passou a respeitar a privacidade do filho e meio que a engolir o jeito caladão dele. Aquele dom natural faria certamente do menino um artista prestigiado e reconhecido no mundo inteiro. Cristã fervorosa, pelo menos era isso o que ela rogava todo santo dia a Deus enquanto se ajoelhava diante da imagem de gesso de Nossa Senhora na sala de estar do sobradinho da família.

Seu Paulão não tinha a mesma benevolência e compreensão de sua mulher para com a genialidade ou comportamento deveras retraído de Edinho. Essa mudez e a mania de ser artista, de ficar o dia inteiro pintando e desenhando, não eram coisas de macho. Paulão se considerava o machão típico, aquele movido pela natureza do seu sexo: ao mesmo tempo que amava verdadeiramente a mulher com quem casou na igreja, dava, sem nenhuma culpa, regulares puladas de cerca e mantinha uma vida dupla com a outra.

– Esse menino precisa levar uma coça pra aprender a ser homem! – repetia o pai para a mãe.

Na escola o assédio e o bullying das outras crianças contra Edinho eram a regra, por causa desse jeito do garoto. Os grandalhões ou os nanicos metidos a besta o viviam chamando para as vias de fato “na saída” após as aulas; alguns davam pontapés no seu traseiro quando pregavam um aviso com os dizeres “me chute” nas costas dele, e até as meninas mais ousadas, lideradas por uma ruiva sardenta chamada Daniela, puxavam-lhe os impecavelmente penteados (por sua zelosa mãe) cabelos lisos até o chão. Edinho sempre reagia de forma desproporcional às agressões, ora choramingava, naturalmente sem emitir uma palavra, ou apenas grunhia; ora dava socos no ar em direção aos contendores, que apenas gargalhavam com a cena.

Aos dezoito anos Edinho ingressou na sonhada escola de artes, para orgulho de dona Maria de Fátima e desgosto do seu Paulão, que, ele mesmo um mecânico que só tinha cursado até a sexta série primária, queria ver o seu único filho doutor: engenheiro, médico ou advogado.

Seu Paulão, no entanto, começou a mudar sua concepção atrasada sobre o curso do filho quando logo na terceira semana de aulas Edinho apareceu em casa com uma nova coleguinha, a Joana, para desenvolverem um trabalho em dupla, situação que passou a se repetir com regularidade nas semanas seguintes, mesmo quando o tal trabalho já parecia ter terminado.

Joana era simpática e bem-educada, bonita até, não falava tanto (mas muito mais que Edinho), e parecia aos pais do garoto que estava começando a se interessar por ele, o que era uma dádiva divina para o seu Paulão, que comentava com a esposa:

– Essa menina Joana caiu do céu, minha filha, ela vai transformar o nosso menino em homem!

As visitas de Joana eram invariavelmente rápidas e de tardezinha, ela não ficava mais de uma hora, uma hora e meia no máximo, tinha que olhar tia Lena, que a criou e com quem vivia só em um casebre a alguns quarteirões dali.

Logo quando a menina chegava Edinho a conduzia para o seu quarto para mostrar a ela suas últimas ilustrações, e onde na imediata sequência dona Maria de Fátima entrava sem pedir licença, trazendo-lhes o lanche da tarde: copos de leite e torradas com geleia de morango. Depois do lanche os dois iam para a sala e, polidamente e sem nenhum contato físico, sentavam-se lado a lado no sofá para assistir à novela das sete com a mãe do Edinho. Na despedida, vez ou outra Joana tomava coragem e dava um beijinho rápido no rosto do menino, mas geralmente apenas dizia um “tchau” e acenava para ele.

A velha tia Lena, na verdade tia-avó de Joana, também percebia o interesse crescente da menina pelo novo amiguinho do curso de artes, e não se incomodava com as visitas quase diárias ao garoto, ao contrário, as incentivava. Achava que ela, Lena, não duraria muito tempo e queria que a sobrinha-neta arrumasse um homem que a fizesse feliz e desse a ela descendentes, o que a velha não pôde ter. Com o passar das visitas, entretanto, começou a achar que Joana já não tinha mais aquele ânimo inicial para com Edinho. Quis saber o por quê. Teria se desiludido com ele?

– Não, tia, eu gosto do Edinho. O problema é que ele tem um defeito intransponível, me parece: não fala nada! Mal me fala oi ou tchau. Nunca vi ninguém assim! Nem quando me mostra aqueles seus desenhos perfeitos me diz alguma coisa! Não faço ideia do que se passa na cabeça dele! Ele é lindo, e é um gênio, sem dúvida, mas é mudo, completamente mudo! E isso está me cansando...

Os pais de Edinho também viam com bons olhos a nova, e única, amizade do filho. Mas a encaravam de formas diferentes: enquanto Maria de Fátima, fervosora cristã, achava, tal como a tia Lena, que Edinho deveria assumir um compromisso mais sério com Joana, casar-se (virgem, claro) com ela e ter filhos, Paulão não punha muita fé nessa coisa de casamento; o pai achava que a relação dos dois, até pela inexperiência do filho, não iria longe, e queria mesmo é que seu rebento perdesse a virgindade, ou seja, se tornasse de fato “homem”, com Joana.

A menina então passou a fazer visitas mais esparsadas na casa de Edinho, era claro que não havia mais mesmo aquela animação inicial com o garoto. Porém, num dia desses, tão logo ela chegou, Edinho já a pegou pela mão, o que nunca tinha feito até então, e a levou para o seu quarto. Ainda que surpresa pelo gesto carinhoso e inesperado do amigo, Joana estava crente que Edinho iria apenas lhe mostrar mais um desenho mirabolante e sensacional. Ledo engano, mal pisaram lá e o rapaz, enfim, pronunciou três palavras, e mágicas, para a garota:

– Quer namorar comigo?

O namoro não foi muito diferente do pré-namoro, apenas um pouco mais “avançado” para os padrões até então: Joana voltou a aumentar a frequência na casa de Edinho, sempre de tardezinha, mas com tempo de permanência um pouco maior, de até duas horas; o anfitrião continuava a iniciar a estadia da apaixonada namorada mostrando-lhe seus últimos trabalhos artísticos, comiam o lanche da dona Maria de Fátima (cujo cardápio passou a variar para pães-de-queijo e cafezinho), e depois se juntavam a ela, sentavam-se no sofá da sala, comportadamente lado a lado e agora de mãos dadas, para assistir à novela e ao jornal da noite. Na despedida Edinho passou a tolerar a troca de beijinhos rápidos na boca com Joana.

Para a tia Lena, a menina parecia mais feliz, ainda que às vezes a visse choramingando pela casa. Joana então lhe confessou que, embora amasse Edinho e de fato quisesse constituir uma familia com ele, não suportava mais aquele silêncio todo do rapaz, e isso lhe trazia uma baita insegurança.

– Nunca me disse uma única vez que me ama! – reclamou. – E quando eu digo que o amo, sabe o que ele responde, quando fala alguma coisa? “Tá”!

Do lado do Edinho, começaram a haver influências opostas dos seus pais: dona Maria de Fátima enaltecia as qualidades de Joana ao filho, dizendo que ela era a mulher da vida dele, que ele jamais a decepcionasse, e que se casasse íntegro, casto e puro com ela; seu Paulão, de seu turno, volta e meia perguntava ao menino se ele já tinha desvirginado a moça, ao que ele respondia com sua usual mudez.

Nesse panorama o casamento foi marcado para dali a quase um ano. As famílias passaram a frequentar a casa uma da outra. Dona Maria de Fátima e tia Lena ficaram grandes amigas. Tia Lena, aliás, adorava Edinho, que, apesar do defeito da fala, ou da falta de, era um menino bom, correto e direito, e faria sua sobrinha-neta muito feliz, dando-lhe novos sobrinhos-netos maravilhosos.

Na cerimônia, que aconteceu na paróquia local, vieram poucos convidados. A festa também foi simples, no salão anexo da igreja, com discretos rapapés e não sortidos canapés; de mais caro havia a champagne francesa, providenciada pela tia Lena. 

Não obstante, as economias de décadas das duas famílias puderam proporcionar aos noivos, como presente de casamento, uma noite de núpcias na cobertura duplex de um badalado apart-hotel no centro da cidade, tal como sonhara Joana.

Havia rosas espalhadas pelo primeiro andar inteiro do apartamento, até na pista de dança privativa, onde Joana conseguiu, com muito esforço, fazer Edinho colar o seu corpo ao dela e ensaiar uns breves passos de valsa ao som de Danúbio Azul.

Em seguida, já altas horas e dando conta de que o rapaz estava esgotado por todas as emoções daquele dia, Joana o tomou pelo braço e correu com ele até a cama de casal king size do segundo andar. Pediu para ele sentar-se na cama e ordenou que ele "não se movesse" até que ela se trocasse no banheiro.

Edinho obedeceu fidedignamente, permanecendo imóvel, e dois minutos depois Joana saiu do banheiro vestindo um roupão, que ela logo retirou e atirou no chão, a mostrar pela primeira vez o seu belo e esculpido corpo nu ao marido.

– Venha, meu amor.

O rapaz permaneceu embatucado, mudo, estático, mas começou a esbugalhar os olhos para a esposa, sem reação, como se não soubesse o que fazer.

Joana agachou-se de repente, pôs as mãos na cabeça, e começou a chorar copiosamente, berrando entre soluços:

–  Não é possível, você não existe! Quem é você?! Será que eu casei com uma esfinge, uma estátua?!...

Edinho manteve-se como uma esfinge ou uma estátua, mas nem tanto: seus olhos começaram a lacrimejar.

– Esta noite era a minha última esperança! Claro que a gente não podia dar certo assim...

Uma primeira lágrima rolou do olho esquerdo de Edinho.

– Quer ouvir uma verdade, senhor Edson? Sabe quem segurou o nosso romance? Sabe quem não me fez desistir de uma vez por todas de você? Dessa sua mudez, dessa sua estranheza, dessa sua esquisitice inexorável, incontornável, incurável? Não foi a minha tia Lena, não foi a sua mãe, foi o seu pai!

Edinho levantou o que ainda pôde das sobrancelhas.

– Sim, o seu pai, o seu Paulão! Saiba, senhor Edson, que ele começou a flertar comigo logo depois que fui pela primeira vez à sua casa...Mas, claro, ele sempre fez isso muito certinho, às escondidas, na oficina dele, na rua às vezes, mas muito longe dos olhos da sua mãe...O fato é que eu acabei me envolvendo, a ponto de ele conseguir me desmoçar!...É, é isso mesmo o que você entendeu: o seu pai tirou a minha virgindade! Me bulinou, me deflorou! Enquanto você não me emitia uma palavra de carinho, aliás, não me emitia nem uma palavra sequer, ao longo de toda a nossa relação, o seu pai estava me fodendo!

Joana levantou-se e se sentou na poltrona ao lado da escada, mirando Edinho.

– Por outro lado...eu tentei, juro que tentei, fugir das investidas dele, mas fui fraca, muito fraca, e não resisti...Cada vez mais tinha asco daquele homem suado, grudento, não suportava aquelas mãos sujas de graxa me pegando, queria que ele morresse ali mesmo, no ato...E ao mesmo tempo...Ao mesmo tempo sentia um prazer enorme de ser comida, mas não por ele...Eu imaginava que ele era você, Edinho, que ele era você!...É isso o que me fez aguentar tanto tempo essa situação, o meu amor por você, porque eu te amo, eu te amo, e é só para você que eu sempre quis me entregar, com quem eu sempre quis trepar...Entendeu?...Meu Deus do céu, fala!...O que pensa de tudo isso?!...Fale alguma coisa, homem, nem que seja uma vez na vida!!

– ...

Tomada pela raiva e pela loucura, Joana sacou uma faca do bolso do roupão jogado no chão e partiu para cima de Edinho, que, erguendo-se, conseguiu reverter a investida e fincar toda a lâmina da arma no coração dela. Joana caiu imediatamente. Edinho deu um passo para trás, olhou com piedade para a esposa morta, e saiu sem nada dizer.


Lui França, março/2024.

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