SONINHA
Segunda-feira, nove horas em ponto, Enzo bateu o cartão. Funcionário padrão, jamais chegara um minuto atrasado naqueles dezenove anos de fórum, e se irritava quando seus colegas não tinham a mesma pontualidade – para ele, trânsito não era desculpa, bastaria sempre sair de casa pelo menos meia hora antes do costume, doutrinava os demais sem muito êxito. Eduardo, o Edu, dez anos a menos de serviço público, e que chegou logo em seguida, reclamou do tempo horrível e da guarda-chuvada que levou na cara de uma “balofa” ao saírem ao mesmo tempo do ônibus. Enzo desconversou dizendo que tinha muito o que fazer diante de três pilhas de processos em sua mesa para autuar, numerar e carimbar.
O diretor da vara Astrogildo, chamado na repartição por “Gildo” (menos pelo formal dr. Robério, o juiz titular, que o tratava pelo sobrenome, Xavier), chegou dali a quinze minutos – ele podia – avisando a todos que a nova funcionária estaria na vara criminal, oito andares acima, finalizando os trâmites burocráticos da sua transferência, e logo desceria. Ninguém conhecia ou tinha muita expectativa sobre a novata, de cuja chegada tinham sido avisados na semana anterior. Enzo imaginava que ela seria mais uma funcionária padrão, tipo a velha dona Evilázia, a insuportável subdiretora, que não conhecia ou respirava outra coisa na vida senão aquela repartição bolorenta – mas teve asco e desespero ao pensar se ele mesmo, tão certinho e disciplinado como era, não seria também, ou estaria se transformando, numa dona Evilázia.
Dali a pouco Gildo reentrou na sala com a moça:
– Pessoal, esta é a senhorita Sônia Albuquerque, de Lins, primeiro para a 8ª Criminal, e agora para a nossa.
Senhorita Sônia abriu um sorriso e fez uma “panorama” de 180 graus do local passando por três funcionários – o Edu, o Ariel e a dona Evilázia –, e parando seus olhos nos esbugalhados do quarto, Enzo – no canto sombrio da sala e com carimbo na mão direita parada no ar –, mostrando-lhe ainda mais sua arcada dentária perfeita, e dizendo:
– Muito prazer...
Enzo ficou impressionadíssimo com a moça, constatando que, em definitivo, ela não seria mais uma funcionária padrão, ao contrário, era em tudo a antítese do que vira naqueles dezenove anos ali: Sônia era linda, alta, fina, bem-vestida, esbelta, simpática, encantadora, exalava um perfume doce e delicado, mas, sobretudo, irradiava alegria, coisa que inexistia no local e principalmente na sua vida miserável.
Ariel e Edu responderam um em seguida do outro com um “prazer” morno, enquanto Evilázia já apontou à nova funcionária a sua mesa, que, para a felicidade de Enzo, era à frente da dele, de modo que ambos ficariam cara a cara. O moço, radiante e sem conseguir tirar os olhos da nova figura – reparando, inclusive, que ela vinha desprovida de aliança no anelar da mão esquerda, e na direita ostentava apenas no dedo médio um anel brilhante de alguma pedra roxa, ametista, talvez –, sentiu que tinha ganhado na loteria. Evilázia, entretanto, para a decepção de Enzo, não deixou a pobre sequer esquentar o seu assento novo – para que ele pudesse melhor apreciá-la, claro, com a devida discrição –, ou nem mesmo servir-se, da velha e havia muito inútil cafeteira, do resto de cafezinho frio da sexta-feira anterior; já a conduziu para as estantes empilhadas de processos e passou a lhe dar explicações do funcionamento burocrático da secretaria judicial. E seguiram assim ao longo de todo o expediente: idas e vindas do gabinete judicial para a secretaria – senhorita Sônia sempre no encalço da velha funcionária –, este é o arquivo morto, aqui são os processos em conclusão com o dr. Robério, e aquele montinho à esquerda os conclusos com o dr. Raphael, o juiz substituto, que está de férias; naquela portinha, o almoxarifado; ali são os processos para publicação, acolá os processos que voltam da publicação, aliás, traga essa pilha de volta para a secretaria que vamos colocá-los nos seus devidos lugares...Incrível como Enzo, sempre tão eficiente e exemplar, com média de vinte a trinta volumes de autos finalizados por dia, caiu de produção de repente: mantinha um olho nos ofícios e petições a carimbar e a numerar, e o outro naquela divindade salvadora a desfilar, com todo o seu charme e beleza, por aquela repartição caquética. Se conseguiu dar cabo no décimo quinto processo, foi muito.
Terça-feira senhorita Sônia chegaria após o almoço, tinha licença médica, segundo dona Evilázia. Enzo, desapontado pelo dia anterior, ficou a meditar que tipo de médico poderia ser ante à perfeição da moça. Não conseguia imaginar que aquele ser pudesse ter alguma doença ou problema físico. Estético, quem sabe, um cirurgião plástico? Mas para melhorar o que já era irretocável? Não faria sentido. Se bem que estava na moda entre a mulherada, pensou: por mais esquálidas que fossem, elas sempre achavam um “pneuzinho” a tirar dos quadris, ou por mais que a natureza as tenha presenteado com seios fartos e redondos – e esse parecia ser o caso da senhorita Sônia, até onde pôde notar da correria do dia anterior –, elas tinham mania de aumentá-los mais ainda com próteses de silicone e esfregar literalmente o resultado na cara das rivais invejosas.
Hora do almoço na lanchonete de sempre da esquina, Enzo e seus dois colegas engoliam o P.F. do dia: macarronada à bolonhesa. O silêncio da fome foi quebrado pelo Ariel:
– E essa tal Sônia, heim?
Edu deu de ombros enquanto sugava um longo fio de massa com molho de tomate.
– Um pedaço! – arrematou Ariel.
Enzo não gostou nem um pouco de saber que seu companheiro também se interessara pela nova aquisição da repartição: teria um concorrente.
– Realmente, o nível melhorou muito – observou Edu, para desespero de Enzo ao constatar um possível segundo adversário. – Formosinha, mas não é nenhuma Sophia Loren...
– Tá de brincadeira? – protestou Ariel. – Uma
deusa! Ah, se eu não estivesse bem com a Rosângela...
– E o que você achou, Enzo?
– Esse filho da puta teve a sorte de sentar-se na frente dela! – riu Ariel.
– Normal... – Enzo balbuciou, olhando para a sua refeição.
– Casada? Viram se tem aliança? – Edu raspava o prato com a faca.
– Não vi, mas o Gildo a anunciou como “senhorita” – Ariel acenou para o garçom e fez gesto de pedir a conta.
– Isso não quer dizer nada, é questão de educação. Ou você acha mesmo que o Gildão, sendo o Gildão, teria algum interesse em saber previamente do estado civil das calouras?
– Aquele viado? Nem pensar! Se fosse calouro, talvez.
Enzo assistia passivamente e com as mãos entrelaçadas sobre a mesa à finalização das animadas conjecturas dos seus companheiros a respeito da nova preciosa colega. Na volta ao batente, outra decepção: senhorita Sônia tivera um “problema particular” e, diferentemente da previsão da dona Evilázia, não foi trabalhar após o horário do almoço.
Que problema particular poderia ser, pôs-se a refletir Enzo, convicto de que ela não era casada – ao contrário dos seus oponentes, ele se atentou ao fato de ela não portar anel nenhum no anelar esquerdo. Para ele, “problema particular” era sinônimo de matrimônio.
Naquela madrugada, Enzo conduzia um trem-bala a trezentos por hora em direção a um túnel ao final do qual, estava convencido, encontraria Soninha. Ao adentrar na escuridão absoluta do túnel, uma voz feminina passou a repetir o seu nome, uma, duas, três, tantas vezes, em ritmo crescente de maria-fumaça e em volume que aumentava à medida que a luz no final do breu foi se aproximando. Estou quase lá!, berrou um já desesperado Enzo. Quando finalmente alcançou a saída daquela galeria sombria e interminável, ele não viu Soninha, e sim a Dionísia, toda chorosa: o padrasto dela, seu Cristóvão, acabara de falecer, o que já era esperado, o homem definhava na cama havia anos. “Que merda!”, pensou o rapaz.
Não havia como Enzo deixar de ir a Presidente Prudente prestar suas últimas homenagens ao seu Cristóvão, que ele julgava ser o único membro suportável da família de sua esposa, simplesmente porque o homem o venerava: embora tivesse genuinamente amado Dionísia no lugar da filha que perdera aos três anos de idade em um acidente de avião junto com a mãe, Cristóvão tinha estima paternal equivalente para com Enzo, tratava-o como o filho varão que não teve, e nesse papel de pai protetor buscava sempre bem zelar pela integridade física e mental de sua cria; ele sabia que a enteada não era flor que se cheirasse em matéria de sexo oposto, e desde o início do relacionamento alertou tal condição ao coração puro de Enzo, que ele tomasse todas as devidas cautelas, que se mantivesse sempre atento, torcendo para que a relação prosperasse e que o rapaz, tão bom, tão direito, tão casto, tão digno e tão apaixonado, jamais se decepcionasse com ela. Cego assim de amor por Dionísia, Enzo deu de ombros para os avisos de Cristóvão. Antes o tivesse ouvido.
Poucas pessoas compareceram ao funeral do velho naquela tarde chuvosa da quarta-feira no Cemitério Parque da Paz. Um primo chatérrimo de Dionísia, Ubaldo, metido a pastor evangélico, resolveu fazer um sermão de mais de meia hora ao pé do caixão, a enaltecer as virtudes do finado, e a orar para que Nosso Senhor Jesus Cristo o recebesse de braços abertos no Paraíso. No caminho de volta de Presidente Prudente, Dionísia conduzindo o veículo – na ida tinha sido Enzo –, o rapaz, esparramado no banco dianteiro ao lado dela e com os olhos cerrados, pensava nos tais alertas do seu Cristóvão e de como se arrependia de ter feito vistas grossas a eles. Rever Soninha na manhã seguinte seria uma bênção.
Na quinta-feira, pontualidade usual, Enzo entrou na vara e não poderia ter tido visão melhor, seu alívio do inferno do dia anterior parecia se consumar: encontrou Soninha sozinha no salão, já trabalhando a mil em sua mesa.
– Bom dia. Cheguei cedo, preciso compensar minhas faltas! – disse sorrindo para o deslumbrado rapaz, que só conseguiu retribuir a graciosa saudação com uma engolida a seco.
Ele mal se sentou e na sequência chegaram juntos os três faltantes: Edu, Ariel e dona Evilázia, esta, para variar, já demandando ordens para o expediente do dia. A novata senhorita Sônia, obviamente, seria a mais demandada. Evilázia logo a chamou para um tour no gabinete dos doutores Robério e Raphael, pilhas de processos a retornar da conclusão e a organizar nas estantes empoeiradas espalhadas pelo recinto. Mais uma vez a véia puxa-saco impedindo Enzo de contemplar a sua deusa, filha da puta!
Hora do almoço, senhorita Sônia gentilmente recusou o convite do Ariel para acompanhá-los na lanchonete de sempre da esquina: tinha trazido marmita. O P.F. do dia era nhoque ou lasanha. Ariel quebrou o silêncio da fome:
– Caras, tô ficando vidrado nessa senhorita Sônia...
Enzo estremeceu na cadeira.
– Vou partir pra cima, Rosângela que se exploda.
– E jogar no lixo quase vinte anos de casamento estável e da boa vida que ela lhe dá? – questionou Edu. – Até hoje não entendi como você ainda bate cartão nessa repartição anacrônica.
– E desde quando ela precisa saber?
– Você não disse outro dia que estava bem com ela?
– É, mas a tentação é forte...mulher igual a essa é uma em um bilhão na vida. Não posso deixar escapar!
– Não sei como e quando conseguiria fazer isso, a
Evilázia não larga do pé dela.
– Tenho meus esquemas...
Os três no caminho de volta ao batente, Enzo refletia sobre a desvantagem que tinha em relação ao seu maior rival: não havia pensado em nenhum “esquema” para conquistar a sua musa. Precisaria arrumar um logo e sair na frente do adversário. A questão é que não conseguia pensar em nada, passava por uma situação inédita na vida: apesar do horror que era o seu casamento com Dionísia e de odiá-la mais do que tudo, jamais tinha se interessado por outra mulher e conservava incondicionalmente a firme crença de manter-se fiel a ela, “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de suas vidas, até que a morte os separe”. Este pressuposto moral o impedia até mesmo de imaginar “esquemas” para ganhar o coração de Soninha, porque qualquer concretização desse fato configuraria em inexorável pecaminosa traição a tais princípios. Assim, por pior que fosse Dionísia, e por mais que ela própria tenha desacatado e continuasse a, na cara dura, desacatar tal juramento ao longo do desastroso casamento, ela não seria merecedora de ser tratada na mesma moeda. Como, então, ganhar Soninha sem poder ganhá-la? Enzo só via uma saída: a deusa é que precisaria tomar a iniciativa, e antes de quaisquer investidas do Ariel. Como fazê-la tomar a iniciativa? Ele ainda não sabia.
O rival, porém, saiu na frente já no retorno do expediente, parecendo começar a pôr em prática os seus “esquemas”: ofereceu-se para substituir dona Evilázia na função de instruir e explicar à senhorita Sônia quanto aos procedimentos da vara, e no que mais ela precisasse para bem executar o seu ofício, o que a velha, cansada, assentiu e não achou ruim, embora àquela altura entendia que a novata já não demandasse tanta atenção especial. Estava óbvio que Ariel buscava se aproximar de Soninha, pensou Enzo. E assim se consumou no resto do dia, quando a produção do rapaz voltou a cair ao passivamente assistir de camarote ao triste espetáculo de ver a sua musa para lá e para cá, no encalço do seu contendor, ou com ele sentado ao lado dela praticamente fazendo todo o seu trabalho. No final do expediente, concluiu Enzo, Ariel conseguira toda a atenção da novata, a ponto de a moça nem sequer dirigir uma única vez o olhar em direção a ele. O rapaz voltou deprimido e puto da vida para casa.
À noite, Enzo parou o Rolls-Royce diante de uma alameda em frente ao castelo de sua princesa, ladeada por árvores cujas copas se juntavam formando um túnel. Ele então deu partida no automóvel e começou a, repetidamente, ir e voltar ao longo do túnel, de frente e de ré, chamando a atenção da nobre dama para que ela aparecesse na sacada. Inútil, ela não aparecia. Enzo então, em desespero, acelerou as idas e vindas na alameda e começou a buzinar. Nada, mas, não se dando por vencido, continuou o vai-e-vem frenético. Logo em seguida, ele percebeu que um vulto, enfim, surgira em frente ao portão do castelo. Extasiado, acelerou em direção ao vulto, mas ao se aproximar da figura percebeu, para seu espanto, que não era a sua esperada princesa, e sim a sua mulher, às gargalhadas. E se não bastasse tal cena tétrica e desesperadora, Enzo ainda avistou o seu grande inimigo em posição de guarda na sacada, vestindo uma armadura de cavaleiro medieval, espada na cintura, fitando-lhe com um semblante nada amistoso.
Sexta-feira, o plano era chegar ao trabalho quinze minutos antes da pontualidade de sempre, na esperança de encontrar de novo a sua princesa sozinha já no batente: Enzo tinha em mente que, se quisesse fazer Soninha ter interesse por ele, precisaria criar oportunidades para que os dois ficassem o maior tempo possível juntos e desacompanhados. Quebrou a cara. Quando lá chegou, não era Soninha que o esperava, era justamente a última pessoa que ele poderia imaginar estar ali naquele momento, local e hora: o Ariel. Merda! O filho da puta dos “esquemas” tivera a mesma ideia que ele.
– Salve, salve! – saudou o rival ao avistar Enzo. – Caí da cama, mal dormi, resolvi vir mais cedo para escapar do trânsito.
“Sei, sei...”, pensou Enzo, indignadíssimo, já se posicionando em sua mesa. Às nove e dois chegaram juntos o Edu e a dona Evilázia, e quatro minutos depois, enfim, Soninha atravessou irradiante a porta da secretaria, o que causou um frio na barriga de Enzo. A moça deu bom dia a todos e finalmente – finalmente! – acomodou-se em seu lugar, sem o Ariel no seu cangote, sozinha, cara a cara com Enzo. Ela lhe sorriu e, ali, ele ganhou o dia, ou talvez o mês, ou o ano, ou a vida, mas por menos de cinco segundos – Gildo entrou na sala acompanhado de um estranho, a roubar a atenção da moça e de todos os demais:
– Pessoal, esse é o Dalton Silveira, novo assessor do doutor Robério.
O tal Dalton era gigante, quase tinha que abaixar a cabeça para passar na porta, mas não era propriamente bonito, para os padrões de Enzo: tinha uma cabeleira negra encaracolada à la Muammar Kadafi, alguns fios brancos, porém com duas entradas consideráveis; sobrancelhas grossas em arcos; olhos negros, que de tão fechados pareciam a continuação dos seus evidentes pés de galinha – aliás, o rosto era todo enrugado e cheio de furos, o que lhe dava uma aparência de bem mais velho; uma pinta ou princípio de verruga na bochecha esquerda. Era inegável, entretanto, a elegância do homem, o que mais se chamava a atenção dele, além do tamanho: vestia um impecável e alinhadíssimo terno vinho Montblanc e uma camisa de seda branca de gola italiana. Com todo esse poderoso chamariz de olhares, Enzo ficou aliviado ao perceber que Soninha pouco deu atenção à nova figura: ela apenas repetiu o “bem-vindo” coletivo e inaugurado pela dona Evilázia, sorriu e começou a se concentrar em sua mesa, àquela altura já tomada de processos. Ótimo! Menos um concorrente: como Enzo, Soninha achara Dalton um gigante sofisticado e até gentil, mas fisicamente desinteressante.
Dalton seguiu para o gabinete do doutor Robério, onde se estabeleceria, e os demais da secretaria entraram na rotina regular de trabalho, com a exceção óbvia de Enzo, que enfim tinha a oportunidade de contemplar a figura de sua musa, frente a frente com ela, a uma oportuna e convidativa distância de menos de dois metros. Nível regular de produção em risco. Ainda assim, claro, tentou ser o mais discreto possível: procurava mirá-la apenas quando a moça dava rápidas levantadas ao toalete, ao leva-e-traz de processos das estantes, à mesa da dona Evilázia ou ao café frio, e nos retornos para o seu lugar, oportunidades em que por duas gloriosas vezes a moça o fitou também, e sorriu. Pronto, Enzo estava no paraíso, Soninha deu assim o primeiro sinal de que começava a se interessar por ele: sorriu para o moço, e por duas vezes!, de um jeito doce, sinceramente simpático, radiante, como jamais fizera para o Ariel. Muito cedo, porém, para cantar vitória: o predador dos “esquemas” estava na área, pronto para dar o bote na presa a qualquer instante, o que, de algum jeito e a todo custo Enzo precisaria evitar. Pensou, e decidiu mandar seus princípios matrimoniais às favas: após o iminente almoço, aproveitando a proximidade física entre os dois e dobrando a sua usual timidez, começaria a puxar prosa com Soninha, de modo a intensificar o interesse dela por ele, e ao final do expediente “partiria com tudo” para cima da moça, convidando-a para um chopp a sós no animado happy hour da lanchonete de sempre da esquina. Quem sabe ali, sim, conseguiria cantar a esperada vitória sobre o pulha do Ariel.
Ao meio-dia e dezoito o pulha bramiu para quem pudesse ouvir na secretaria e adjacências:
– Gente, sextou! Vamos todos almoçar no Boi Voador? Evilázia, Edu...vamos chamar também o Dalton...Senhorita Sônia? Não venha com desculpa de marmita! É um buffet fantástico!
– Não, vou sim, claro, sexta-feira não trago comida... – Soninha abriu um sorriso sem graça para o Ariel.
Minutos depois partiram para o restaurante, na Rua Tabatinguera, a trezentos e cinquenta metros do fórum, Enzo, Ariel, Dalton, Edu e Soninha – dona Evilázia nunca ia aos raros almoços de sexta-feira no Boi Voador, era a conhecida antissocial da turma, mesmo assim, por educação, sempre a convidavam.
No caminho, já na Tabatinguera, os cinco passavam ao lado de uma obra em um edifício, separada da calçada por um tapume de madeira. Dentro da obra havia um caminhão-guindaste, que do alto sustentava uma pequena viga de ferro. No que o braço do guindaste iniciou um movimento para a esquerda, após o berro de um dos operários do local, a viga de ferro se desprendeu da estrutura e atingiu em cheio a cabeça do Dalton.
Os demais congelaram na hora, sem entender o que
havia ocorrido, e o silêncio naqueles subsequentes segundos foi quebrado por um
grito desesperador de “Oh, meu amor!” de Soninha ao tomar o já falecido
ensanguentado nos braços.
Lui França, 2023.
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