O MESMO

 



Dona Valentina, a síndica perpétua do Condomínio Vila Verde, resolveu convocar uma reunião extraordinária para discutir sobre o louco morador que berrava pelos corredores de madrugada gritando coisas como “cadê o mesmo do elevador?” ou “o mesmo se encontra parado neste andar? Vou fuzilá-lo!”.

Explica-se. Por causa de uma lei sem pé nem cabeça de três décadas anteriores, todos os elevadores de edifícios situados no perímetro urbano deviam constar ao lado de suas portas uma placa com os seguintes dizeres:

“Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”.

Pode até parecer um aviso inútil, já que normalmente as portas dos elevadores só abrem quanto eles estão parados nos respectivos andares, mas consta que a lei veio à tona porque a prima da vizinha da enteada do prefeito alardeou a todos de pé junto que sua filha quase caíra com o namorado no fosso do elevador do prédio de alto padrão onde morava, quando a porta do equipamento se abriu e o elevador, surpreendentemente, não estava lá.

Na reunião, convocada para uma sexta-feira às 19h30, compareceram apenas os gatos-pingados de sempre: a insuportável novata dona Carmelina, do 12, professora aposentada de português, conhecida sem saber no edifício como a “véia do nhenhenhém” por sua mania de reclamar – invariavelmente com o porteiro de turno – de tudo e de todos com sua voz de trovão, entre outras porque as pessoas tinham o mau hábito e a má educação de bater a porta corta-fogo pesada de ferro das escadas do térreo, o que lhe causava, dizia, uma dor insuportável na espinha; a dona Valdenice, do 72, a mais antiga moradora do prédio e o oposto da primeira: sempre discreta e, embora pernanecesse quase calada nas reuniões de condomínio (ia mais como “ouvinte”, avisava), dizia orgulhosa que nunca faltara a nenhuma; o seu João Gilberto, do 32, velho músico hippie, multi-instrumentista, mas que precisou levar a bateria para o depósito na garagem subterrânea depois da vinda da dona Carmelina, e, enfim, o Rubens Ronaldo, do 121, o mais abastado do prédio, jovem estudante de artes cênicas e morador da cobertura, e de cujo “santo” não batia com o da “véia”, embora, pela distância entre os apartamentos, ela jamais tivesse tido ciência das festinhas e orgias costumeiras do rapaz até altas horas dos finais de semana.

Valentina iniciou os trabalhos:

– Bom, pessoal, convoquei essa reunião porque ouvimos reclamações de que um louco, ou uma louca, não se sabe bem, anda gritando altas horas da madrugada pelos corredores do prédio...

– É um louco mesmo, é voz de homem – interveio Carmelina.

– Bem, que seja...ãhn...as testemunhas dizem que ele fica berrando perto dos elevadores...

– Não só isso, fica berrando tipo “vou trucidar o mesmo do elevador!”, “cadê o...”, nem consigo pronunciar os palavrões, mas fala muito aquele da sigla com três letras, “...do mesmo do elevador!” – esclareceu Carmelina.

– Quais são as outras testemunhas além da senhora do 12? – quis saber Rubens Ronaldo.

– O seu Cláudio, porteiro da noite – Carmelina olhou torto para o rapaz, percebendo seu tom sardônico.

– Impossível – retrucou Rubens. – A portaria está a quase cem metros da entrada do prédio, esse cara tinha que usar um megafone.

– Tem outras testemunhas, sim, menino, está me equiparando ao louco?

– Não foi minha intenção, senhora me desculpe, só fiz uma observação lógica.

– A senhora, dona Valentina, já ouviu esse doido? – perguntou o João Gilberto. – Eu, não.

– Também não... – aproveitou a deixa a dona Valdenice.

– Eu não ouvi ainda, mas os relatos são consistentes – explicou a síndica.

– Claro que são consistentes, há semanas que esse infeliz não me deixa dormir, é toda santa noite esse inferno! – queixou-se Carmelina.

– Então só se for no andar da senhora, eu estou dois acima e durmo com os anjos.

– Óbvio, o senhor dorme com protetor de ouvido, como já me falou uma vez, porque é músico e tem zumbido.

– Não, engano da senhora, eu só uso protetor para tocar bateria no depósito, porque o som lá é infernal, fica represado, nunca dormi com ele.

– A senhora já perguntou ao seu vizinho do 11 se ele já ouviu o tal louco? – indagou Rubens.

– Não, essa família é esquisita, vive viajando, nunca estão lá. Se cruzei com eles uma vez na vida foi muito.

– Eles moram em Sorocaba hoje em dia, apenas vêm para cá de vez em quando – esclareceu Valentina.

– E os vizinhos do segundo andar? Sou amigo de ambos e nunca me falaram desse tal maluco – observou João. – Aliás, um é promotor de justiça e a outra é delegada de polícia, duvido que se os tivesse incomodado uma única vez ficaria impune.

– O senhor está insinuando então que esse louco desvairado desce exclusivamente na porta do meu apartamento para me infernizar toda noite?

– E por que não? Tem louco para tudo.

– Vocês estão de brincadeira, né? Não é possível que só eu acorde com esse insano! Às vezes estou sonhando e os berros dele entram no meu sonho, acordo sufocada, com taquicardia, parece que vou morrer! Valentina, e as tais câmeras que você prometeu nos corredores, o aumento do condomínio neste mês não foi para isso?

– Não, foi para trocar os azulejos da piscina, que estão quebrados. Pauta da última reunião, a senhora não lembra?

– Só se eu tivesse participado, mas eu te justifiquei, e mais de uma vez, que fiquei gripada e por isso não vim.

– Desculpe, não me lembrava, mas a senhora não precisava ter justificado sua ausência. De todo modo, se sobrar algum dinheiro vamos priorizar a troca das câmeras da portaria, que vivem dando defeito, e todos sabem que está havendo uma onda de assaltos na rua. A dona Lourdes, do 41, quase foi roubada outro dia mesmo. Temos que atentar à segurança de todos.

– Tá, e enquanto isso como fica a minha segurança? Vou ficar o resto da vida à mercê desse potencial assassino?

– Já que ele só incomoda a senhora, por que não instala uma câmera particular na sua porta? – sugeriu Rubens.

– Ou mais barato que isso – interveio João Gilberto: – Quando ele te acordar, corra para a sua porta e lhe dê um flagra. Ou faça plantão na porta a noite toda, esperando por ele.

– Acho que vocês são tão loucos quanto ele! Imagina que vou me expor assim, correndo risco de morte! Não, Valentina, você vai ter que tomar alguma providência, se não pode instalar câmera no corredor, contrate então um, sei lá, vigia noturno para fazer ronda nos andares!

– Qualquer providência que ela tome vai implicar em mais aumento de condomínio, minha senhora – protestou Rubens.

– Que seja, pois! Não é para a segurança de todos?

– Não, é para segurança exclusiva da senhora, só a senhora está ouvindo esse conjecturado louco!

– Claro, como é que você vai ouvir, se mora lá nas alturas?

– A prova de eu não ouvir é que esse suposto não passa por lá!

– Valentina, esses dois insistem que só eu estou me incomodando com esse desequilibrado. Pois muito bem, então faz assim: faça uma pesquisa formal e por escrito com todos os moradores do prédio, perguntando quem mais já ouviu um perturbado que sai de madrugada gritando “vou mutilar o mesmo que se encontra parado neste andar!”, ou “o mesmo se encontra parado neste andar?”, tá bem? Além do mais é um analfabeto: ele repete essa frase estúpida e errada da plaquinha, que usa “mesmo” como pronome pessoal para se referir ao elevador, quando o certo seria usar “ele”...”verifique se ele está parado neste andar”, e não “o mesmo”! Quem sabe se a frase estivesse escrita com a norma correta da língua esse infeliz não tivesse cruzado o meu caminho!

– Está certo, dona Carmelina, será providenciada a pesquisa. Justo.

– Essa pesquisa custará algum extra para nós?

– Não, senhor Rubens, pode ficar tranquilo. Mais alguma coisa, senhores? Acho que conseguimos atingir o objetivo da reunião, sim?

– Só vou ficar tranquila quando enquadrarem esse mentecapto e eu e o meu bebê conseguirmos dormir em paz.

– Ele também o incomoda, Carmelina? Não o ouço latir de madrugada – observou a síndica, que era vizinha de mesmo andar do João Gilberto.

– Meu bebê só late para estranhos.

– Ah, é? Que bom...bem, está encerrada a reunião, boa noite a todos...


Lui França, julho de 2023.


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