O BULDOGUE
O milionário Henry Martin partiu desta para melhor aos 92 anos, e no dia seguinte aos funerais o seu quase tão idoso e fiel advogado e amigo de décadas, Mr. Charles Penna, reuniu os dois filhos e únicos herdeiros diretos – Henry Junior e Robert – para a lenta e pausada leitura do testamento na mansão do patriarca em Beverly Hills:
Em nome de Deus, eu, Henry
Martin, em plenas faculdades mentais, estabeleço este testamento para garantir
o bem-estar futuro do meu amado companheiro, Shrimp.
Ao longo da última
década, Shrimp trouxe alegria, lealdade e amor incondicional à minha vida. Ele
sempre esteve ao meu lado nos momentos de felicidade e tristeza, nunca me julgando,
como meus dois filhos ingratos, apenas oferecendo apoio incondicional. Sua
devoção inabalável e a conexão profunda que compartilhamos tornaram-se uma
parte inseparável da minha jornada.
Com o coração cheio de
gratidão, nomeio Shrimp como o único beneficiário dos meus bens e propriedades
após a minha partida deste mundo.
Para assegurar que
Shrimp desfrute de uma vida plena e feliz, estabeleço um fundo fiduciário que
será gerido por meu velho amigo e tutor de confiança, Mr. Charles Penna, de
maneira vitalícia, para cuidar das necessidades médicas, alimentação, abrigo,
lazer e bem-estar geral de Shrimp. A quantia destinada a este fundo corresponderá
a todo o meu patrimônio em espécie quando da minha partida, ao que Mr. Penna
terá único e exclusivo acesso, e será suficiente para garantir que Shrimp tenha
uma vida confortável e enriquecedora, refletindo a dedicação que demos um ao
outro.
Deixo claro que esta
decisão é um reflexo do amor profundo que sinto por Shrimp e da gratidão pela
felicidade que ele me proporcionou. Desejo que ele continue a receber o mesmo
amor e cuidado que sempre esteve presente em nossa relação.
Assino este testamento
com alegria e paz no coração, confiando que Shrimp será acolhido em um ambiente
amoroso e carinhoso, onde ele sempre pertenceu.
Henry Martin, fevereiro de 2015.
Junior e Robert permaneceram estupefatos fitando o advogado ancião, que transpareceu a eles não menos perplexo ante à surpresa de se ver ali nomeado como tutor do único beneficiário daquela herança milionária.
– Como é que é, entendi direito? – questionou o caçula. – O velho sovina deixou todo o seu patrimônio, absolutamente tudo, esta mansão, o Lamborghini, a McLaren, os milhões em aplicações de longo prazo e até as malditas rosas premiadas, para aquele buldogue pulguento?
– Leia de novo por favor, Mr. Penna, acho que não compreendemos bem – rogou Junior, ainda incrédulo.
– “Em nome de Deus, eu, Henry Martin...”
– Não, em nome de Deus eu é que peço ao senhor para nos poupar mais uma vez desse acinte, compreendemos muito bem, e digo aos senhores: não me surpreende em nada! – berrou Robert.
– Não, eu não compreendi, principalmente a parte que ele fala que os filhos são ingratos...foi esse o termo mesmo que ele usou, Mr. Penna?
O anoso causídico mirou seus olhões atrás das lentes de fundo de garrafa no trecho mencionado por Junior, e confirmou.
– “Meus dois filhos ingratos!...”. É inacreditável! Eu, que sempre estive ao lado dele até os últimos dias; eu, que lhe dei todo o suporte depois que ele teve o derrame e ficou imobilizado; eu, que lhe dava comida na boca e cheguei até a auxiliar as enfermeiras a lhe dar banhos!
– Deixa de ser cínico, Junior! Você também rodou o mundo desde cedo e só voltou a vê-lo nos últimos dois anos, depois que ele ficou doente, e a gente sabe muito bem a razão: você estava de olho é na herança do velho, queria garantir a sua parte, não é?
– Mentira! Antes de ele ficar doente nos falávamos pelo menos uma vez por mês!...OK, a cada seis meses...ou ano, acho...Mas nada comparado a você, que sumiu da vida dele depois de fugir de casa aos 17 anos com a Mercedes 500 do velho, ele nunca o perdoou! Se tem algum filho ingrato aqui é você!
– Ele tinha me prometido aquele carro quando fizesse 16 e tirasse a habilitação, e nunca cumpriu a palavra! Eu apenas peguei o que me era de direito!
– Mr. Penna, esse testamento pode ser anulado?
– Receio que não, Junior. Não pelas nossas leis. A vontade do testador prevalece...
– Mesmo que o beneficiário não seja um ser humano e não tenha a menor noção sobre o patrimônio que herdou? Mesmo que não possa usufruir dele?
– Mas Shrimp usufruirá dos bens que herdou. Vocês viram, Henry constituiu um fundo fiduciário onde todo o seu patrimônio estará depositado, para garantir o bem-estar de Shrimp...
– Sim, um fundo ao qual apenas o senhor, como o tutor nomeado daquele animal, terá acesso – observou Robert.
– Receio que sim, pelo jeito...
– E como se sente a respeito, Mr. Penna? – indagou Junior.
– Confesso que estou tão surpreso quanto vocês. Nem sabia que Henry tinha tanta adoração assim por Shrimp. Mas, sem querer julgar vocês, filhos, o fato é que Henry, apesar de tão rico, era um homem muito triste, amargurado e solitário...
– Ele não me parecia
nada triste, amargurado ou solitário enquanto eu limpava sua bosta e trocava
suas fraldas. Quanta ingratidão! Nem um centavo, nem um mísero centavos dos
milhões, vai tudo pro cachorro!
– Tudo pro buldogue pulguento, papai deve estar rindo da nossa cara no inferno...
– Não é possível que não se possa cancelar essa aberração!
– Olha, e você quer saber, mano, que se foda! Eu nunca quis o dinheiro dele mesmo. Nunca mais o procurei desde a Mercedes. Me virei sozinho, juntei um dinheirinho, sobrevivi. Quisesse, teria feito como você, voltasse correndo depois que ele ficou inválido.
– Você insiste em me tachar de oportunista e interesseiro, né? Será que sou o único? Você que é o hipócrita, não voltou simplesmente porque não o encontramos para avisá-lo quando ele adoeceu! Por um milagre conseguimos achá-lo agora que ele morreu!
– É você que está se adjetivando...
– E o senhor, Mr. Penna? Com todo o respeito, mas o senhor não é muito mais novo que o meu pai, certo?
– Dez anos, estou com 82...
– Pois. Oitenta e dois e uma bela bengala. Sem querer ofender, mas o senhor mal se sustenta de pé. Acha que vai ter condições de sair por aí fazendo cooper com o cachorro?
– Não, claro que não – o advogado soltou um risinho forçado. – Mas o fundo fiduciário de Shrimp garantirá que eu contrate profissionais para esse tipo de entretenimento...
– Com todo o dinheiro que ele herdou o senhor vai poder contratar profissionais de todas as áreas possíveis, impossíveis, imaginárias e inimagináveis – ironizou Robert. – Clínica veterinária privada, motorista para passear na Lamborghini, personal trainer para brincar de bola e jogar gravetos...
– Imagino que o senhor esteja aposentado, vai ter bastante tempo para cuidar do cachorro.
– De fato, terei. Sou viúvo há mais de quinze anos, e meu único filho faleceu em um acidente de carro aos 22. Henry era minha principal companhia nos últimos tempos...
– Papai realmente parecia gostar e confiar muito no senhor.
– Sim, fui seu procurador por décadas, com plenos poderes, antes mesmo de ele adoecer. Henry confiou a mim toda a sua vida financeira, fazia de tudo, de declaração do imposto de renda a coisas banais, como pagamento de contas ou da fatura do cartão de crédito...
– E por óbvio todo esse acesso que o senhor já tem às contas dele facilitará sua missão, digamos, canina, a partir de agora.
– Certamente... – Mr. Penna limpava com uma flanela o óculos de fundo de garrafa.
– Bem, melhor assim, não é? – Robert se dirigia ao bar que ficava no canto da sala de estar. – Melhor, em sendo esse o desejo do velho pão-duro, que seja confiado a alguém que lhe era idôneo e de boa reputação.
– Ainda não me convenci de que não se possa invalidar isso... – ponderou o primogênito.
– Relaxa, irmão! Proponho um brinde ao buldogue e a Mr. Penna como seu fiel e abnegado tutor! – Robert levantou uma taça com espumante, e deu um gole. – Que seja uma feliz, duradoura e profícua parceria...viva Mr. Penna, viva Shrimp!
Dez minutos depois Mr.
Penna se despediu dos irmãos e foi embora. No caminho de casa, conduzindo o seu
conservadíssimo Fusca 69 prata, soltou uma gargalhada ao pensar como tinha sido
fácil passar a perna nos três membros da família com aquele testamento fajuto.
Lui França, 2023.
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