O ALUGUEL

 


Dr. Castro era o advogado de Trabiju, mil e quinhentos habitantes segundo o senso mais recente, interior de São Paulo.

O escritório do “doutor advogado”, como era conhecido – fora os raríssimos clientes, ninguém se lembrava ou guardava o seu nome –, funcionava no andar superior de um sobradinho na praça da igreja matriz, acima do único açougue da cidade, do qual certa feita ele também fora sócio, dividindo o negócio com o velho Zé Ruela. Não que ele tivesse alguma aptidão para o ofício de açougueiro, como o Zé, não sabia nem desossar um frango, mas resolvera entrar no ramo porque lhe parecera mais lucrativo que a advocacia, já que quase ninguém tinha grandes ou pequenos problemas jurídicos naquela cidadezinha pacata.

Mas a sociedade pouco durou: Zé Ruela tinha fama de encrenqueiro, bêbado e mau caráter – uma vez cachorros e gatos dos logradouros da cidade começaram a sumir misteriosamente, e correu a história de que o Zé estaria vendendo em seu estabelecimento a carne dos bichos como filé mignon, picanha, alcatra e até coração de galinha, o que fez debandar a freguesia por um bom tempo –, e acabou se transformando no único cliente de fato do doutor advogado, inclusive para defendê-lo contra tais inúmeros e infames difamadores. E como o (mau) acordo inicial entre os dois implicava em Castro receber o pró-labore pela sociedade apenas em carnes, ao menos “até que a situação do negócio melhore”, como pregava o Zé, e o que nunca aconteceu, foi só Ruela sugerir ao doutor também estender tal forma de pagamento aos seus honorários pelos serviços advocatícios a ele prestados que Castro se encheu e mandou o Zé para a ruela.

Questão é que o dr. Castro vivia de favor na pequena edícula de quarto e sala nos fundos da casa da dona Maricota, sua sogra, junto com a mulher, Katyna, e seus doze filhos menores de idade – “dez gurias e dois fedelhos”, como ele dizia, orgulhoso –, e já não aguentava mais essa situação, que para ele era humilhante. Ora, o único advogado da cidade viver de favor na casa da sogra era mesmo o fim da picada (embora quase ninguém, talvez apenas o Zé Ruela, soubesse disso, porque todo mundo achava que a casa pertencesse ao próprio doutor, e a sogra é que vivesse lá de favor); advogado tem que mostrar um mínimo de decência, de pompa, de status!

Decidiu então que alugaria uma casinha para chamar de sua e abrigar Katyna e a dúzia de rebentos. Mas, precavido, sabia que não poderia fazê-lo em Trabiju: todo mundo os conhecia, e, por isso mesmo, obviamente que nenhum proprietário, fosse quem fosse, aceitaria alugar o seu imóvel para eles, cientes de que aquela criançada toda destruiria a residência.

Solução, pois, seria alugar a casa na cidade vizinha de Boa Esperança do Sul, onde ninguém jamais tinha ouvido falar em dr. Castro e sua filharada ou em Zé Ruela. E a mudança de ares, pensou o patriarca da família, também poderia lhe trazer novas oportunidades de trabalho e, principalmente, novos e lucrativos clientes, de que ele tanto precisava. 

Batido assim o martelo quanto ao local do novo lar dos Castro, em um sábado de manhã partiram os catorze na velha Kombi branca a Boa Esperança, para reconhecimento da área e “olhadelas” nas casas para alugar da região.

Ainda que treze vezes maior que Trabiju, a família conseguiu em menos de duas horas fazer um tour por toda a nova cidade. Castro gostou mais de uma casa de alvenaria branquinha próxima ao centro (e também do fórum, o que lhe seria muito conveniente); Katyna se encantou com uma casinha rosada mais afastada, com canteiros de flores na varanda, e a criançada só pensava no sorvete da sorveteria que eles passaram em frente, na mesma rua da primeira casa, e que fora prometido pelo pai quando eles terminassem o passeio e decidissem, afinal, em qual imóvel morar.

E decidiram rápido: como era o mês de aniverário de Katyna, para agradar a amada esposa Castro se curvou à opção dela pela casinha rosada com canteiros de flores na varanda. Ela ficou feliz da vida.

Não obstante, naquele momento, apesar de toda a felicidade da família, dr. Castro vivia uma angústia. Sabia que seria perguntado pelos corretores da imobiliária se tinha filhos. E sua moral e ética de advogado, tão solidamente erigidas ao longo de décadas de honrado labor, não permitiriam outra resposta que não a verdade: sim, ele tinha filhos, e doze. Problema é que, em fazendo isso, correria o sério risco de dizer adeus à casinha rosada, às rosas na sua varanda, à Boa Esperança e à boa esperança de angariar novos e lucrativos clientes. O que fazer?

A resposta veio ao dr. Castro quando eles passaram em frente ao cemitério da cidade, a caminho da imobiliária indicada na placa de “aluga-se” da casinha rosada. O doutor parou de súbito o carro no portão do cemitério, trocou breves palavras com Katyna, e a convenceu de passear lá dentro com onze das doze crianças enquanto ele fosse na imobiliária com o primogênito, Chico, resolver o aluguel.

Com efeito, logo depois, na imobiliária “Viva Feliz”, conforme as previsões do dr. Castro, servido o cafezinho, o simpático corretor Gilberto, entre diversas outras, fez a fatídica pergunta:

– O senhor só tem esse filho, o Chico?

– Não, tenho mais onze. Chico é o mais velho.

– Mas onde estão os outros?!

– Estão no cemitério, junto com a mãe deles...

Dr. Castro alugou a casinha rosada com canteiros de flores na varanda, sem mentir, honrando sua moral e ética profissional.


Lui França, 2023.


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