MERCADO

 


Encontraram-se depois de um ano e meio de separação, na fila do caixa único do mercado, a quinze minutos da meia-noite. Ambos com cestinhas de compras nas mãos. Ela, que veio logo atrás, o viu primeiro. Ficou estática, rezando para que ele não a visse. Não adiantou, uma menininha passou berrando pela mãe no corredor, e ele torceu o pescoço para olhar. Notando o movimento e aproveitando a deixa, ela o imitou, esperançosa de que com isso ele não a perceberia. Inútil. De cara ele reconheceu o rabo-de-cavalo moreno comprido e a camisa de coraçõezinhos que ele lhe dera num dia dos namorados. Sem graça, logo voltou-se para a frente, fingindo não a ter visto. Ela ainda esperou longos segundos, atônita e encarando uma robusta senhora que acabara de entrar na fila, para começar uma meia-volta em câmera lenta, os olhos apertados, atemorizados de, ao final, abrirem e verem ele ali, cara a cara com ela. Não. Ufa! Ele permanecia de costas para ela, como se nada tivesse acontecido. A robusta senhora então emparelhou-se com ela e pôs a mão no ombro dele, que deu um pulo, achando que fosse ela. Pediu desculpas pelo susto e disse-lhe ter preferência para passar na frente, já que tinha mais de sessenta, uma hérnia de disco e estava só com um leite longa-vida para a sua netinha, que a aguardava no carro. Ele, claro, assentiu, e enquanto deixava a senhora avançar a fila pôs-se de perfil para a ex, que, repetindo o gesto, rapidamente pegou uma dessas revistas de moda que ficam naquelas estantes laterais dos caixas e começou a folheá-la. Ele então discretamente girou os olhos para a cesta dela, e viu uma garrafa de Jack Daniel´s, duas baguetes enormes e frios. Recompôs-se para a frente, estupefato. Ela odiava bebida, não tomava nem licor, o que dizer de whisky, bebida de macho! Concluiu que só poderia ter homem na parada. Que, obviamente, estaria esperando o banquete no apartamento dela – morava só a duas quadras dali – após uma sessão de sexo total. Ou antes do bacanal? Pouco importava. Rilhou os dentes, apertou os olhos e calcou o chão, emputecido. Percebeu que sentia, não à toa, um ciúme que jamais sentira em catorze anos de convivência quase frigida com ela. E que, portanto, ainda poderia amá-la, o que o aterrorizou. Seu transe foi interrompido pela mocinha do caixa berrando “próximo!”. No susto praticamente jogou a cesta no balcão, quando ela, com a cara ainda atrás da revista, teve oportunidade de matar sua curiosidade e espreitar o conteúdo da compra enquanto ele a passava junto à mocinha entediada e com cara de quem contava os minutos para ir embora: dois pacotes de fralda, um de Marlboro e quatro macarrões instantâneos. Congelou, atônita. Pensou por alguns segundos que, com tal compra, não, aquele não poderia ser ele. Era um sósia. Afinal, só o estivesse vendo de costas, praticamente. Fraldas? Será que nesse um ano e meio separados ele deixara de ser oco e tivera um filho? Não, muito provavelmente não. O filho só poderia ser de uma namorada nova, se é que ele tivesse uma. Para o filho de uma empregada, talvez? E aquele pacote de Marlboro? Não fazia o menor sentido, ele odiava fumar, dizia a vida inteira que sentia asco de cigarro, vangloriava-se de nunca ter colocado um pito na boca. De uma hora para outra virou um fumante compulsivo, talvez estimulado pela suposta namorada nova, esta sim uma fumegante inveterada, ou pela empregada-mãe? Aliás, que irresponsabilidade, fumar desse jeito com um bebê em casa!  Não, não podia ser ele. Embora aquela camisa xadrez...E o que dizer dos miojos? É certo que ele amava um miojinho na manteiga de vez em quando, o que ela lhe reprimia com veemência, aquilo não era comida! Mas, claro, agora separados – em sendo ele, ele –, comia o que lhe dava na telha, liberto da patrulha dela. Veio-lhe, pois, de súbito, um tremendo remorso por estar pensando tudo aquilo dele, caso fosse ele mesmo, o que ela tinha quase certeza. O que é que teria? Ele era livre para decidir envenenar-se de cigarros e miojos com quantas namoradas e empregadas quisesse, ter quantos filhos tivesse vontade – caso tenha resolvido, enfim, o seu problema –, e, afinal, ele era um bom homem e sua separação fora amigável. Só amor que não havia mais. Não havia mais? Pensou se, ao assim concluir, ainda poderia desejá-lo, e isso a desconfortou. Seu transe foi interrompido pela mocinha mal humorada do caixa já num quase inaudível “próxima”. Ele ainda de costas para ela, colocando suas compras em sacolinhas plásticas, preparando-se para sair. Ele deu o primeiro passo e ela não resistiu, chamou-o pelo seu nome composto. Ele virou-se para ela, e ela pôde confirmar que de fato era ele, e lhe sorriu. Ele retribuiu, encarando-a por segundos. E foi embora.

Lui França, março de 2023.


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