A MÚMIA
Ai meu Deus, que saudades da Amélia. Aquilo sim é que era mulher.
Um infarto fulminante levou o seu tão amado Nerzinho, o seu Nelson, sessenta e duas felizes primaveras após a troca das alianças.
Nerzinho morrera em sua poltrona favorita, no centro da sala de estar do casarão do Jardim Europa, no final do Jornal Nacional, ao responder ao “boa noite” sedutoramente grave do William Bonner.
Dona Amélia, sentada na sua poltrona não menos favorita colada ao lado esquerdo da do marido, não se conformou. Jamais admitira que o seu amado esposo partisse dessa vida antes dela. Bateu o pé com a família: não haveria luto, nem velório, nem enterro. Nerzinho estava apenas imerso naquelas “hibernações” dele e acordaria quando lhe desse na telha. “Mas e o resto da família, os primos dele, precisam saber que ele morreu!”, disse um dos filhos logo após a consumação do fato. “Deixem seu pai dormir!”, trovejou a esposa zelosa.
Mas Amelinha, como o seu velho a chamava, não se abateu. Nos momentos seguintes à morte de Nerzinho ela teve a ideia genial, no esteio daquele negacionismo da partida do seu amado para o plano superior, e a compartilhou com os herdeiros diretos, todos reunidos junto ao corpo já enrijecido e na posição pós “boa noite” ao Bonner.
– Que loucura é essa mamãe, empalhar o papai?! – protestou Clara, primogênita e a mais razoável e ponderada da família.
– Não é empalhar, é embalsamar, seu pai é passarinho por acaso?!
– Ah, igual fazem com os papas, como fizeram com o Lênin? – indagou Neve, a do meio, tida como a mais culta e perspicaz.
– Isso sai mais barato que enterrá-lo? – perguntou Branco, o caçula, o mais ignorante e sovina.
Dinheiro, definitivamente, não era problema naquela família. Seu Nelson pertencia à sexta geração de um clã de latifundiários cafeicultores do Vale do Paraíba. Orgulhava-se de sua origem nobre e do tetravô agraciado com o título de barão. Com o tempo o clã diversificou as atividades de suas vastas fazendas e passou a criar gado e a produzir leite, que era comercializado nos armazéns e mercadinhos das cidades próximas.
Mas os passatempos favoritos de Nerzinho eram mesmo a caça e a taxidermia. Tinha mania de conservar íntegros todos os animais contra os quais atirava nas matas de suas próprias terras ou nas de fazendeiros amigos vizinhos – com exceção daqueles que ele considerava visualmente atraentes e comestíveis (ainda que realmente não fossem), e que eram servidos nas sopas de entrada ou como prato principal nos almoços de domingo, sob a tolerância de sua amada e complacente Amelinha e indiferença ou asco dos três filhos. Nem besouros gigantes e borboletas coloridas escaparam da exposição nas paredes, estantes ou sobre os criados-mudos do casarão do Jardim Europa. Todos com uma plaquinha embaixo com o nome científico da espécie e as datas em que foram dizimados – seu Nelson era super dedicado e organizado no ofício. Só na sala de estar onde o velho deu seu último suspiro existiam doze espécies diferentes empalhadas. Não à toa que Clara pensara que sua tresloucada mãe quisesse dar o mesmo destino daqueles bichos ao cadáver de seu pai – que nem mesmo havia esfriado –, talvez pendurando sua cabeça ao lado da onça-pintada, a peça favorita do velho, tomando-lhe o posto de maior atração daquela mórbida e esquisita exposição.
Dona Amélia não perdeu tempo. Professora aposentada de biologia de um dos mais tradicionais e elitistas colégios da capital paulista, onde seus filhos estudaram, sabia que o corpo do seu amado se decomporia rapidamente. Era preciso mantê-lo intacto, na sua “hibernação”, antes que os germes pensassem em começar a devorá-lo. Correu para o notebook no escritório e numa rápida busca na Internet encontrou algumas empresas especializadas em embalsamamento. Animada, escolheu a que achou a mais “bonita”. Telefonou para o número indicado e uma hora depois a equipe de cinco técnicos já bateu à sua porta.
Dr. Palhares, dono da empresa e chefe da equipe, ficou pasmo quando soube da intenção da velha de mumificar o marido e de mantê-lo ali exatamente como e onde ele estava. Tentou lhe explicar que a técnica de embalsamamento de hoje em dia objetivaria tão somente a preservação do corpo para ser transportado para um enterro em um local distante, ou para conservá-lo durante o velório, não para a eternidade. Dona Amélia retrucou, chamando o dr. Palhares de incompetente e dizendo que sua empresa era uma “porcaria”, e que pagaria o quanto ele quisesse, até mesmo com uma das fazendas da família no Vale do Paraíba, para “eternizar” ao seu gosto o seu Nerzinho. Ante tal proposta tão tentadora, dr. Palhares reconsiderou sua posição, aceitou a fazenda e disse que o procedimento de mumificação do sr. Nelson começaria imediatamente no laboratório da empresa.
Exatos trinta dias depois, sob torcidas de narizes dos descendentes, dona Amélia organizou uma festança no casarão para comemorar o retorno do seu amado Nerzinho. Os primos Lúpio e Adamastor, únicos parentes colaterais vivos do seu Nelson, compareceram, embasbacados como todos os demais diante da perfeição do trabalho do dr. Palhares e equipe. Ninguém diria que sobre aquela macróbia poltrona jazia um defunto. Ao contrário, Nerzinho tinha um ar mais jovial, e Neve reparou até que as rugas dos olhos do seu pai e aquelas linhas crônicas na testa, que lhe eram tão características, haviam sumido. Seu Nelson até expressava um sorriso de Monalisa. Dona Amélia dava pulinhos de felicidade.
Ceia posta por uma atônita Maria – a empregada que servia a família havia quarenta anos – diante de tão tétrica bizarrice, dona Amélia convidou os presentes para se dirigirem à sala de jantar, mas não sem antes ordenar aos netos mais velhos João Paulo e Carlos que carregassem o avô até o seu lugar na mesa. Clara protestou:
– Que loucura é essa, mamãe?! Não era para o papai ficar na poltrona? Vai ficar levando ele pra lá e pra cá, daqui a pouco vai começar a feder!
– É o jantar de boas-vindas para o seu pai e ele vai cear conosco!
Dito e feito, Nerzinho cuidadosamente transportado e acomodado no seu lugar na mesa, sempre ao lado direito da sua amada esposa, a assombrada Maria serviu a todos o produto da derradeira caça do seu Nelson: tatu assado, com batatas souté.
– Achei que ele fosse empalhar esse – observou Branco.
– Já tem uns três ou quatro espalhados pela casa – disse Neve.
– Espalhados ou empalhados?
– Empalhados e espalhados.
– Não sabe que seu pai ama tatu? Toma aqui, meu velho, o seu pedaço favorito! – Amélia colocou um belo pedaço do que seria o peito do animal no prato do finado marido.
– Delícia! – arriscou Adamastor. – Parece muito com frango, só que mais forte! Não acha, mano?
O mano Lúpio permanecia com os olhos marejados a fixar, ainda céptico, do outro lado da mesa, as enormes pupilas dilatadas do seu queridíssimo primo a também lhe encarar, com a mesma cara e expressão que Nerzinho lhe fazia quando o chamava para “pegar uns preás” – como Nelson designava qualquer animal – no mato: Lúpio era obstinado companheiro de caça do seu Nelson, ia mais pela companhia e amizade de vida inteira, porque era péssimo atirador e não sabia nada de taxidermia.
Então o primo e irmão que Nerzinho não teve começou a chorar e a soluçar copiosamente. E antes que alguém desse um pio para lhe confortar, Lúpio levantou-se de súbito e, aos prantos, correu para detrás do primo e o embalou com força, a apertar o tórax artificialmente estufado de Nelson, calcando sua testa sobre o ombro do defunto, tudo sob gritos de protesto de “sai, sai, deixa ele comer em paz!” de dona Amélia e olhares incrédulos dos demais. A cena rapidamente comoveu a todos, até Amelinha parou de deblaterar, e dali a pouco a família inteira, Maria incluída, contaminada pelo lamento desesperado do parente, juntou-se a ele num enorme chororô em volta de Nerzinho.
Como se nada tivesse acontecido naquela família, os meses seguintes foram tão ou mais agitados para o seu Nelson do que antes do fatídico “boa noite” ao Bonner.
O amor incondicional de Amelinha e sua dedicação ao marido; a renitência dela em negar a nova situação inelutável do velho companheiro e de continuar a zelar e de cuidar dele como se permanecesse vivinho da silva acabaram – tal como ocorrera com o primo Lúpio no jantar de boas-vindas – por contagiar a família toda. Nem Clara resistiu à virose.
Amélia ficava vinte e quatro horas ao lado do esposo, atendendo a todos os seus “pedidos” e lhe auxiliando em todas as suas “necessidades”. Só não o levava ao toalete porque realmente não precisava, mas tinha deveras vontade de lhe dar banhos com alguma regularidade, para mantê-lo sempre “cheirozinho”, como ela costumava dizer. “Nem pense nisso, mamãe, dr. Palhares altamente recomendou não banhá-lo, vai estragar todo o trabalho!”, bronqueava Clara. A contragosto, Amélia assentiu, mas para compensar todos os dias espanava as partes expostas de Nerzinho (rosto, pescoço, braços e pés) e passava longo e meticulosamente um pano seco nas vestimentas (camisa polo e calça social) para tirar o excesso de pó.
E “conversavam” de forma animada o dia todo. Amélia sempre lembrava ao marido dois fatos marcantes e inesquecíveis da vida do casal: quando se conheceram, em uma festa à fantasia de uma amiga comum da universidade – Nerzinho “lindo” de caubói estilo Clint Eastwood, na verdade não muito diferente do que foi a vida inteira; Amélia de Amélia mesmo, com um vestido amarelo fosco comum (nunca teve a menor vaidade, aquilo é que era mulher), porque fora convidada na última hora e não tivera tempo de encomendar algo mais apropriado ao tema –, e quando se casaram, exatamente no mesmo dia do ano seguinte, com toda a pompa, na famosa e tradicionalíssima Paróquia Nossa Senhora do Brasil.
Numa noite, ao assistirem ao Jornal Nacional, Clara presente – a primogênita, divorciada, e o caçula Julinho, de doze anos, passaram a viver no casarão após o retorno do seu Nelson; Clara queria ficar de olho na mãe e proteger o cadáver de seu pai contra qualquer abuso ou devaneio maior da velha em relação aos cuidados ou não cuidados com ele –, Bonner narrou a notícia de uma mulher que levou um idoso morto em uma cadeira de rodas a uma agência bancária para tentar sacar a aposentadoria dele.
– Que ideia genial! – aplaudiu Amelinha. – Viu essa?!
– Está louca, mamãe?! Quer você aparecer presa amanhã no Jornal Nacional, para o Brasil inteiro?
– Estou falando da cadeira de rodas! Desde que seu pai hibernou não andamos mais pela vizinhança, como fazíamos todo santo dia! E ele está doidinho por uma voltinha, não é meu velho?
O velho permaneceu mudo com o sorriso de Monalisa e os olhões fixados na notícia seguinte, sobre mais um aumento no preço da gasolina, o terceiro em menos de um mês.
– De jeito nenhum! – trovejou a filha. – Se a senhora começar a fazer isso, sair com ele por aí, com o sol a pino, dali a pouco vai passear com uma caveira!
– Uma vez por semana está de bom tamanho, não é velhinho? Pode ser? Para pegar um arzinho, espairecer, é sempre bom. Com o seu chapeuzinho favorito na cabeça, e um lençolzinho para proteger o seu corpinho. Sua Amelinha vai cuidar disso, tá mô?
Na mesma noite Amelinha já cuidou disso: encomendou, pela Internet, uma cadeira de rodas novinha e “lindíssima” para o “mô”, que chegou no final do dia seguinte. E na manhã do outro dia, Clara no trabalho, Julinho na escola e Maria a fazer vistas grossas, saiu a empurrar pela rua, feliz e orgulhosa, o marido na cadeira novinha. A cena, obviamente, não passou – como não teria passado – despercebida para dona Elizabeth, a famigerada maior fofoqueira do bairro, alcunhada sem saber, provavelmente por algum daqueles moleques maldosos da área, como “Dona Frígida”, embora ninguém entendesse o sentido do apelido, por mais incômoda que fosse a figura. Beth, como era chamada pelos não maldosos, exercia o seu passatempo preferido: espreitar a movimentação da rua da janela do andar superior do seu sobrado, do outro lado do casarão. Em menos de um minuto conseguiu alcançar Amelinha, já quase virando a esquina.
– Amélia, quanto tempo, querida! Faz anoooos que não vejo vocês, não saem mais! Oi seu Nelson! Meu Deus do céu, o que houve com o senhor?! O que houve com ele, Amélia?!
– Derrame, minha filha. Ou, como chamam hoje em dia, AVC hemorrágico.
– Jesus, coitadinho! Mas...mas ele não fala mais?!
– Não fala, não anda e nem pisca. Quer dizer, para mim acho que ainda dá umas piscadelas, não é mô?
“Frígida” travou com as duas mãos sobre a cabeça enquanto assistia Amélia seguir seu caminho.
A partir daí, mais de uma vez por semana – contrariando o que havia dito – e longe dos olhos de Clara, Amélia passou a sair à luz do dia a empurrar Nerzinho para lá e para cá, para cima e para baixo, no mercadinho da esquina, no mercado maior um pouco mais afastado, na farmácia, na padaria. Para os perplexos conhecidos, e não eram poucos, ela usava a convincente explicação que dera para Beth: derrame. Todos se condoíam com a triste situação do seu Nelson, alguns se ofereciam para ajudar dona Amélia no que fosse necessário, outros, que se consideravam um pouco mais íntimos do casal, faziam brincadeiras bem-humoradas com o encadeirado imobilizado e tentavam, inutilmente, dialogar com ele.
No recreio da escola numa sexta-feira, o astuto Julinho, animadíssimo, foi compartilhar com os melhores amigos Zeca e Cabeça o anúncio que acabara de fazer e de espalhar para a garotada da turma pelo aplicativo do celular:
MEU AVÔ EMPALHADO
A MAIS NOVA ATRAÇÃO DO CASARÃO-MUSEU DA
EMPALHAÇÃO.
MENINOS: R$ 10,00 / MENINAS: R$ 5,00.
TRATAR COM O JULINHO DO 7º ANO – B.
E aconteceu que, no sábado ensolarado, um pouco antes das dez horas, formou-se na frente do portão do casarão uma pequena aglomeração já se colocando em fila, Cabeça e Zeca liderando, composta por garotos, garotas e alguns adultos. Um homem empurrando um carrinho de pipoca, que estava passando na rua em direção à Avenida Brasil, viu a oportunidade e resolveu se posicionar junto ao grupo. Seu Edílio, o pai do Zeca, tocou a campainha e, como o interfone estava quebrado, Maria foi atender.
– Que horas abre? – indagou Edílio.
– Como?
– A exposição do avô empalhado.
– O quê?
– Começa às dez? Geralmente essas coisas começam às dez.
– Aceita cartão de crédito? – emendou Amásio, tio do Cabeça.
– Mas do que os senhores estão falando? Aqui é uma casa de família...
Percebendo da cozinha a estranha movimentação, Clara foi intervir, e na sequência de perguntar, estarrecida, o que estava acontecendo, ouviu do já buliçoso grupo coisas como “chega de lengalenga, tenho compromisso, au revoir!”, “vai até quando essa exposição?”, ou “além do avô, quantas peças tem empalhadas?”. Zeca tomou à frente do pai e questionou Clara onde estava o Julinho. Ela respondeu que no clube, e, ainda atônita, insistiu em saber o motivo do fuzuê. O Cabeça lhe mostrou o anúncio no celular. Esbugalharam-se os olhos de Clara, a moça saiu do sério: passou a bradar termos impublicáveis para os presentes, e que se não debandassem naquele minuto chamaria a polícia. Edílio tomou as dores da turma e contra-atacou a mãe do Julinho com outros despautérios, e dizendo que processaria a família por fazê-los perder tempo com aquela fake news.
Quando Julinho voltou do clube Clara lhe passou aquele carão, e de castigo foram-lhe confiscados, por trinta dias, todos os seus idolatrados aparelhos eletrônicos, videogames e telas.
Mês e meio depois, Clara acabado de voar para a Holanda a trabalho, onde ficaria por semanas, e Julinho já livre da pena, dona Amélia ligou para o primo Lúpio:
– Podemos ir, Lupinho! Liberado geral!
Lupinho apareceu felicíssimo em quarenta e cinco minutos. Deu um abraço forte no seu Nelson e lhe encarou, piscando:
– Vamos pegar uns preás, meu velho?
O velho devidamente acomodado na confortável SUV do primo, partiram Lúpio, Amélia e Julinho para Santa Clara, a maior das fazendas do seu Nelson. Neve e Branco também tinham sido convidados, mas recusaram – o caçula alegou “excesso de trabalho” (velha desculpa nunca levada à sério por ninguém da família, conhecido vagabundo e bon vivant que era), e a filha do meio disse que, embora não visse nenhum problema que levassem o pai para “caçar” naquelas condições, ela não gostaria de contrariar Clara, a quem tinha adoração e invariavelmente se curvava, e que certamente reprovaria tal aventura.
No maravilhoso quase entardecer daquele mesmo dia na fazenda saíram os três a caminhar pelo trecho inicial plano da trilha principal, Lúpio com a sua velha carabina, presente de Nerzinho, e Amelinha a empurrar o amado em sua cadeira de rodas. Dali a pouco, logo à frente, uma cascavel pula do matagal e, balançando o chocalho, ousa cruzar o caminho do grupo. Lúpio imediatamente tomou o braço direito de Nerzinho, posicionou a mira da carabina rente ao olho direito dele e fez o dedo indicador do velho morto acionar o gatilho em direção ao réptil. Claro que, mau atirador que era o primo, o projétil passou longe do bicho, que se escondeu do outro lado do mato.
Na manhã seguinte Lúpio insistiu em querer tirar o primo morto da cadeira de rodas só para “dar uma cavalgadinha de leve com ele, com todo o cuidado!” no Azarão, o mangalarga favorito do seu Nelson. Amélia resistiu, temendo que o primo, a quem julgava que estaria mais para lá do que para cá que o seu próprio Nerzinho, não conseguisse segurar a contento o seu protegido amado, e ele se esborrachasse no chão, quebrando algum osso, o que ela jamais se perdoaria. Julinho, animadíssimo com a ideia e querendo ir junto, sugerindo posicionar-se à frente do vovô para lhe dar mais estabilidade, conseguiu “dobrar” a avó. E assim, com a ajuda de Tição, o fiel peão, Nerzinho foi ajeitado em cima do cavalo, primo e neto também subiram aos seus postos, e saíram felizes a trotar pela fazenda.
Na noite em que completou um ano da morte do seu Nelson, Julinho no clube e quando Maria já tinha ido para casa, Clara chegou do trabalho e encontrou dona Amélia a assistir em silêncio e de forma vidrada à novela das nove, o que não era normal – seus pais odiavam novela e só ligavam a TV para ver o Jornal Nacional, e olhe lá, e eventualmente algum filme. Chamou a mãe por duas, três vezes, sem resposta. Aproximou-se e colocou a mão no ombro dela, sacudindo-a de leve, ainda a clamar “mãe, mãe!”. Nada, dona Amélia continuava imóvel. E então Clara entendeu o que havia acontecido. Não se abateu, ao contrário, choramingou sorrindo e pensou: “Que lindo, ela foi encontrar o papai no primeiro aniversário de ida dele, danadinha!”. Em seguida, pegou o celular e um a um deu a notícia aos irmãos e ao primo Lúpio. Eles começaram a aparecer em poucos minutos.
Passaram-se três anos desde então.
Hoje Amélia repousa em sua poltrona favorita no centro da sala de estar do casarão do Jardim Europa, ao lado esquerdo e coladinha à do seu amado Nerzinho, com a mão cobrindo a dele.
Aquilo sim é que era
mulher.
Lui França, 2022.
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