CIZÂNIA


Pegaram o elevador no térreo quatro figuras completamente díspares entre si: uma gordona baixinha de cento e tantos quilos, um adolescente ruivo sardento com boné dos Denver Broncos, um executivo alto de óculos escuros, com terno Armani preto e uma malinha de detetive, e uma senhora grisalha miúda, magérrima e de coque.
A gordona entrou primeiro e já apertou o 47 de uma torre de 66, onde uma clínica de um famoso psicanalista dividia o andar com um não menos conhecido escritório de advocacia empresarial, e também com a sede de um grande laboratório. Os demais se acomodaram atrás dela, e como ninguém pediu para ela apertar outro andar – seu corpanzil robusto os impedia de fazê-lo –, todos presumiram que iriam para o mesmo nível.
A TV pregada na parede passava o noticiário do almoço: a repercussão da eleição do novo presidente dos Estados Unidos, o mais velho da história, com quase oitenta anos.
Apenas a senhora de coque e o executivo mauricinho pareciam interessados, mirando a tela. A gordona permanecia imóvel tapando o painel do elevador, e o moleque sardento balançava a cabeça com os olhos fechados, como que curtindo uma música imaginária.
Ficaram assim em silêncio até entre o 3º e o 4º andar. Foi quando todos sentiram um cheiro forte e quente de uma mistura de gás sulfídrico, metano e outros, vindo da altura das suas cinturas.
A gordona imediatamente deu uma olhadinha para trás, e notou que os quatro se entreolhavam, mas acabaram focando nela mesma, gordona.
Gordinha sempre leva a culpa nessa hora!, pensou.
– Que calor, meu Deus! – a velha sacou imediatamente um leque da bandeira do Japão, que deveria ocupar o espaço inteiro da sua bolsinha roxa, e começou a se abanar.
– É a poluição dessa cidade. Vocês não viram a que nível chegamos ontem? Não chove, é esse sol escaldante, dá nisso! – arriscou a gordona.
– “Dessa cidade”, sei... – murmurou o moleque.
A gorda se enfezou.
– Ô menino, você está insinuando o quê? Que fui eu, só porque sou forte?
– Forte?? Isso é eufemismo... – sardentinho começou a rir.
Os abanos da velha aumentaram de intensidade.
– Isso é uma falta de educação com os narizes alheios, quem quer que tenha soltado essa bufa, não podia esperar chegar no banheiro lá em cima? – reclamou a senhora, curta e grossa.
– “Bufa”! – divertiu-se o moleque. – Olha só, a véia é descolada!!
– O senhor está muito quieto, heim? – gordona apontou o dedo para o mauricinho, tentando mudar o foco do culpado, crente de que a desconfiança de todos era sobre ela.
– Pois não, minha senhora?
– O senhor está num silêncio!!...
– Estou pensando numa reunião que vou ter daqui a pouco, senhora.
– Bom, boa sorte! É possível que o responsável seja o único que consiga chegar vivo até lá!
– Ô moça, me desculpe, mas esse cheiro veio daí das suas bandas! – reclamou a velha miúda.
– Da sua banda com “u”, ela quis dizer! – gargalhou sardento.
– Realmente, o odor não é muito agradável e essa coisa não chega logo no 47, estou atrasado – enfim mauricinho reclamou. – Mas isso pode acontecer com qualquer um, em qualquer elevador. Deem um tempo!
– Então o senhor admite! – berrou a gordona.
– Não admito nada, por que cismou com a minha cara? Estou com madame aí, quem faz isso é mal educado, e eu não sou!
– Madame aí é a mãe!
– Então se não foi o senhor, não fui eu e não foi essa senhora, só pode ter sido esse pirralho!
– Eu não teria espaço para esvaziar tanto gás! – pirralho retrucou, rindo.
– Preconceito, gordofobia! Tem uma delegacia de polícia aqui na frente, certo? Vou abrir um B.O. contra os três quando sair!
– Eu sou de menor, a senhora não pode fazer nada.
– “Dimenó”, a velha desculpa! “Dimenó” só a cara!
– Quem tem que abrir B.O. sou eu, isso é tentativa de homicídio! – berrou a velha, que esticou o pescoço para o mauricinho alto: – O senhor, com essa pinta de advogado, não é mesmo? Tentativa?
– B.O. quer dizer “bom odor”, hahaha...Ela vai abrir mais um bom odor contra a gente! – dobrou-se o menino.
– Olha, senhoras, só acho que a polícia tem coisas mais importantes para se ocupar.
– Meu marido é chefe de polícia aposentado, e em 50 anos de profissão garanto que viu coisas muito mais leves que isso!
– Mais leve que esses gases, só a senhora! – sardento engatava uma gargalhada na outra.
– Menino bobo! – protestou gordona, com um sinal de aprovação da velha.
– Caramba, esqueci de mandar o email pro Matt... – mauricinho murmurou pondo a mão na cabeça.
– Ele trabalhava nessa delegacia, daqui da frente? – gordona.
– Não, no Brooklin, a vida toda.
– Prendeu quantos em 50 anos por soltar bufa no elevador? Hihihi... – sardentinho.
– O Robson vai me matar...merda, por que não mandei?
– Mas você mandou merda! Quer dizer, por enquanto só as preliminares, você sabe o que eu quero dizer! – moleque.
– Ah, graças ao bom Jesus estamos chegando...que gente mal educada e louca! – velha desabafou, segurando a cruz da sua correntinha.
– Bom, foi um desprazer! – disse gordona quando a porta se abriu.
Os quatro viraram à esquerda, onde no final do corredor ficava o consultório do famoso psicanalista.

Lui França
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