A PAPISA

 


Fim de tarde na Praça de São Pedro, Vaticano, 12 de maio de 2021.
Uma multidão de pessoas se aglomerava em frente à imensa basílica. Gente de todos os cantos do planeta, católicos em sua maioria, crentes e descrentes, os olhos voltados com grande expectativa para a Capela Sistina, de onde, poucas horas antes, havia saído apenas um fumo negro, a indicar um escrutínio sem êxito. Contudo, como um sinal dos Ceús, tão logo uma pomba branca pousou no teto da capela, uma fumaça clara passou a ser expelida pela chaminé. O mundo, enfim, conheceria o seu novo papa.
Quase duas intermináveis horas depois, quando a pomba já há muito ziguezagueava sobre a varanda da basílica, como que de guardiã do novo Bispo da Igreja que ali adentraria a qualquer momento, Carlos Monteverdi, o primeiro dos Diáconos, apareceu às pressas e bradou a boa nova:
  Annuntio vobis gaudium magnum: Habemus Papam!... Sardônico, Monteverdi ainda fez uma pausa antes de continuar, possibilitando-se ouvir um silêncio absoluto que emanava daquela multidão.
  Eminentiæ ac Reverendissimum domina Eliene de Vasconcelos Souza, qui sibi nomem imposuit Theresia Primus.
Não houve tempo para que o povo pudesse assimilar o nome da nova pontífice: assim que o diácono terminou de pronunciá-lo, Teresa I entrou triunfante na varanda da Basílica de São Pedro, os dois braços acenando para os milhares de incrédulos que tomavam completamente a praça à sua frente. Gritos de euforia, algumas vaias tímidas. Três desmaios e um ataque cardíaco fulminante, de Donatella Cavalcanti, 96 anos, a mais idosa entre todos no local que puderam testemunhar a eleição da primeira papisa da História.
Eliene de Vasconcelos Souza nasceu aos 17 de janeiro de 1973, em Salvador, Bahia, Brasil. Filha do biscate José Souza e da empregada doméstica Marlene de Vasconcelos, primogênita de oito filhos, Eliene não conseguiu completar o ensino primário, precisando parar de estudar aos doze anos para cuidar dos irmãos enquanto os pais trabalhavam.
Adolescente, exerceu o ofício de babá e diarista para ajudar no sustento de casa e, aos dezessete, morena, longos cabelos negros cacheados, corpo de mulher feita, exímia bailarina, chamou a atenção de um ascendente cantor local, que a convidou para integrar, como dançarina, sua recém-formada banda de pagode, Sambabundante, que em três anos se tornou um sucesso nacional.
A carreira artística de Eliene, no entanto, veio a deslanchar somente quando ela trocou o secundário posto de dançarina de uma banda de gênero musical de gosto duvidoso pela de vocalista de axé, estilo de música surgido em seu estado natal nos carnavais dos anos 1980 e que rapidamente se popularizou pelo país todo, misturando inúmeros distintos ritmos como reggae, forró e merengue.
Alçada à condição de celebridade, Eliene adotou o nome artístico de Lili do Axé, como ficou realmente conhecida. Aos vinte e três já tinha atingido a marca de mais de um milhão de discos vendidos. Era figura recorrente em programas de televisão e anúncios publicitários de todo tipo, até de preservativos masculinos. Noivou-se aos vinte e sete de um único herdeiro de um empresário do ramo de mineração. O casamento nas paradisíacas Ilhas Canárias nunca chegou a se concretizar: dias antes da data marcada o jovem, ao volante de sua Ferrari, não resistiu a um acidente a mais de trezentos quilômetros por hora em uma estrada da Baviera. Outra sorte teve a suposta acompanhante, uma misteriosa loira que, segundo testemunhas, milagrosamente teria escapado ilesa e desaparecido. Eliene, desde então, resolveu abrir mão em definitivo do sonho de se casar.
No auge da carreira, da fama e da fortuna, sua vida mudou radicalmente de rumo na noite de 15 de dezembro de 2006. Em uma apresentação para um público de mais de cem mil entusiasmados fãs em Manaus, a tragédia: como uma torre de cartas que se desmorona, o palco de cinco metros de altura veio abaixo. Mais de vinte feridos. Na queda, Eliene bateu a cabeça em uma das colunas de ferro que sustentavam o tablado. Permaneceu inconsciente, entre a vida e a morte, por mais de quinze dias.
Em sua biografia, Da Perdição à Redenção, escrita dez anos depois de próprio punho, Eliene descreveu em minúcias os dias de coma passados no hospital amazonense. Jura ter recebido a visita de Nossa Senhora, ao menos por uma vez, ocasião em que a Santa teria lhe proferido a seguinte revelação:
Querida filha. Sairás desse leito de enfermidade e viverás plena e inteiramente para servir ao Senhor e a Seus filhos. Ficarás livre de tudo aquilo que te distancia d´Ele. Não insistirás em viver mais do pecado. Não permitirás mais que o mal se apodere de tua vida. Rezai. Somente pela força da oração podeis suportar o peso das provações que hão de vir. Avante. Eu te abençoo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Ficai em paz.
Enfim desperta do sono profundo, Eliene teve uma recuperação quase instantânea, deixando atônito o mundo e em particular a comunidade médica, que em poucos dias constatou, pasmada, que a grande lesão no crânio havia simplesmente desaparecido, como em um passe de mágica.
Passe de mágica? Não. Milagre. Não havia qualquer outra explicação possível para o ineditismo do fato, ainda mais se corroborada pelo surpreendente único testemunho da vítima, convicta de que sobrevivera por obra de Deus, mediante a intercessão de Sua Mãe.
Aos trinta e três, idade em que Jesus Cristo teria perecido na cruz e ressuscitado, ela abandonou inteiramente o passado. Lili do Axé morrera naquele acidente em Manaus, mas Eliene de Vasconcelos Souza estava mais viva do que nunca, em pleno vigor físico e espiritual, pronta para dar início à sua real missão na Terra: dedicar-se de corpo e alma ao cumprimento de cada uma daquelas divinas palavras que a Santíssima lhe dirigira.
Fez voto de castidade e de pobreza, passando a viver como uma freira sem clausura. Empregou toda a sua fortuna e bens materiais, adquiridos ao longo de sua vida artística, em uma congregação missionária internacional de ajuda a necessitados de toda ordem: crianças carentes, idosos sem teto, doentes, inválidos, pessoas abandonadas, etc. Dez anos após a fundação do Lar de Deus, além do Brasil, a missão estava em quase todos os países da Ásia e da África, tendo a Santa Sé reconhecido e fortalecido seu trabalho missionário, aumentando ainda mais sua presença pelo mundo. Em 2018, aos quarenta e cinco, Irmã Souza foi laureada com o Prêmio Nobel da Paz.
Ao escolher o nome de Teresa I, buscou homenagear Santa Teresinha, de quem sua mãe, então falecida, era devota. Como primeira mulher a suceder o trono de São Pedro, tinha total ciência das dificuldades e provações que certamente haveriam de vir, como bem revelara Nossa Senhora.
O Concílio de Salvador ocorreria em janeiro de 2022, na capital da Bahia, com data de inauguração marcada para o dia 17, aniversário da papisa, oito meses após início do seu pontificado. Milhares de prelados estavam de prontidão, a comunidade católica do mundo inteiro se mobilizava.
A assembleia ecumênica prometia resultar, ao final, no rompimento de posições milenares da Igreja sobre pontos nevrálgicos de sua doutrina, dois em especial: o fim do celibato para o clero e a permissão de ordenação para mulheres. Teresa I ousaria romper algumas “verdades absolutas” e “imutáveis” da doutrina católica, enraizadas ao longo dos séculos e jamais contestadas, no escopo de modernizar a Igreja e adaptar a disciplina eclesiástica às condições dos novos tempos. Na madrugada de 16 de janeiro de 2022, na véspera da abertura do Concílio de Salvador, Teresa I foi encontrada morta na casa onde vivera na infância com seus pais e irmãos. A versão da Igreja foi o de que a Santa Madre havia perecido de causas naturais ao visitar parentes em sua terra natal. Seu corpo foi embalsamado e levado às pressas ao Vaticano para os cerimoniais fúnebres, presenciados por milhares de desolados e indignados fiéis.
Dias depois uma parte deles voltou à Praça de São Pedro. O novo conclave. Muitos acompanharam pela TV, sem grande entusiasmo.
 A fumaça, enfim, veio clara. Para eles, os tempos continuariam obscuros.

Lui França
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