1807


Naquela manhã de novembro fui despertado com uma enxurrada de matérias fecais sobre a minha cabeça, jogadas da janela do andar superior do Palácio de Queluz. A merda provavelmente fora originada das entranhas de Dom João e expelida naquela madrugada, já que veio volumosa, clara e um tanto pastosa e, na ocasião, corria entre os leais funcionários do palácio a anedota de que se as tropas de Napoleão Bonaparte não destronassem o covarde príncipe regente, o piriri real o faria.
Àquela altura havia mais de dois meses que eu servia a real família portuguesa, porém nesse meio tempo sempre dei minhas escapadinhas, jamais abandonando minha família verdadeira de Ontário.
Logo quando cheguei da explosiva Paris de julho de 1789, após a tomada da Bastilha, tornei-me ajudante particular do príncipe regente de Portugal e membro do Conselho de Estado graças a uma preciosa ajuda financeira à Real Casa Pia de Lisboa, menina dos olhos de Sua Majestade Dona Maria, mãe de Dom João. Minha caridade, extremamente significativa para sua debilitada e enlouquecida mãe, agradou profundamente ao príncipe, de quem adquiri plena confiança, e me transformei em um de seus fiéis escudeiros.
Naquela madrugada acabara adormecendo mesmo ao relento, ao pé da sacada do palácio, com a língua desgraçadamente para fora, tão esgotado estava pela tensão e pelos acontecimentos dos dias anteriores: a edição do Le Moniteur que circulara pelas ruas de Lisboa, e na qual o próprio Napoleão alardeou que a Casa de Bragança havia cessado de reinar sobre a Europa; aquela meia-noite, quando o oficial da corte Joaquim José de Azevedo se reuniu com o príncipe e com o Conselho de Estado e anunciou que o exército do general Junot havia penetrado em território português e avançava rumo à capital, e, enfim, a balbúrdia geral que se seguiu com os preparativos para o embarque de toda a nobreza portuguesa ao Brasil.
Às onze da noite da véspera da fuga chovia a cântaros sobre o Palácio de Queluz, mas o príncipe regente, entre um Pai-Nosso e uma Ave-Maria debaixo da escrivaninha (Sua Alteza morria de medo de raios e trovões), insistira em degustar, antes de nanar, uma daquelas coxinhas de galinha da granja do palácio – sim, a despeito de todo o luxo ali havia uma granja real. Porque eu estava disponível, e já não bastassem os berros de terror de Dona Maria, cotidianamente perseguida por demônios e por mais sei lá o quê, fui designado para providenciar o petisco real. Missão cumprida, nem consegui chegar aos meus aposentos, fora do palácio – desabei ali mesmo.
Para a surpresa de todos, Dom João passou aquela tensa noite em Queluz, junto à má-companhia de sua odiada esposa Dona Carlota Joaquina e dos filhos do casal, Dom Pedro e Dom Miguel, embora preferisse mil vezes a solidão do Palácio de Mafra, sua residência havia dois anos, depois de mais uma tentativa frustrada de Dona Carlota de tomar as rédeas do reino.
Mas se Carlota não conseguiu destronar o marido, tronava absoluta em Queluz, e liderou com toda soberania a evacuação às pressas do palácio, pondo todo mundo para correr: pajens e camareiras trabalharam a noite toda para retirar móveis, ornamentos e quadros das paredes, enquanto outros empregados reais ficaram incumbidos de transportar até o porto peças de roupas, de louças, jóias, faqueiros etc.
O sol brilhante do dia do embarque, em contraste com a tempestade de horas antes, não foi capaz de esquentar aquela manhã fria de outono. Levantei-me assustado e ensebado sobre o lamaçal, e corri para me lavar. Eram sete e meia e ainda tinha de coordenar junto aos camareiros reais o banho de Dona Maria, provavelmente a única da corte a se limpar com certa regularidade, talvez porque sua frágil e delicada condição assim exigisse – ninguém ali era muito chegado a uma banheira.
Dom João era chegado mesmo em franguinhos assados na manteiga, sem ossos. Naquela manhã – e como se ele não tivesse passado mal na noite anterior justamente por causa deles – encomendou-me uma dúzia. Queria comer alguns ao longo do dia, nos intervalos das refeições, como costumava fazer, e outros pretendia levar na viagem, todos enfiados nos bolsos de sua velha vasta e nojenta casaca de sempre.
– Sua Majestade quer saber quando partiremos.
O príncipe regente referia-se a si mesmo na terceira pessoa. Isso particularmente me irritava, e mais ainda quando me fazia de menino de recados para seus familiares, o que era nada incomum, com pérolas do tipo Sua Majestade quer que lhe diga o que deve dizer a Pedrinho para convencê-lo a comer. O príncipe podia ser meigo e bonachão, mas acima de tudo era fraco e inseguro de si. É incrível como tenha passado para a História como um dos mais bem-sucedidos monarcas de seu tempo.
– O mais rápido possível, Majestade – era assim que eu o tratava, do jeitinho que ele gostava, embora também fizesse a mesma reverência para a única efetiva majestade do reino, Dona Maria. – Vossa carruagem está quase pronta, vou certificar com os cocheiros.
– Devo explicar ao povo as razões dessa súbita partida? Pensei num rápido beija-mão às margens do Tejo, a caminho do porto, pelo menos àqueles dignos de nobreza, que sempre nos apoiaram e que não terão embarcação...
– Sinceramente, Majestade? Não creio que seja boa ideia. Primeiro, porque a maioria dos nobres, senão todos eles, conhecem o motivo da partida de Vossa Majestade. Muitos inclusive estão embarcando. Além disso, uma notícia como essa poderá cair como uma bomba para esse povo sofrido e que tanto ama Vossa Majestade Real. De uma hora para outra se sentirão completamente desamparados, sem o seu provedor querido, sem o seu pai adorado, e entregues a toda sorte de desgraças...
– ...e ao exército do general Junot, já em marcha a poucas léguas daqui, senhor meu marido. Portanto, é bom apressarmos o passo – emendou Dona Carlota, chegando de surpresa aos aposentos do príncipe, provavelmente a primeira vez desde quando se separaram.
– Sua Majestade não quer embarcar na mesma nau que essa mulher – disse o príncipe, fitando-me com aqueles olhões negros esbugalhados. De fato, embarcariam em naus diferentes: Dom João, sua mãe e os dois herdeiros Pedro e Miguel na majestosa Príncipe Real; Dona Carlota e mais algumas infantes no Alfonso de Albuquerque.
– Ora, senhor meu marido, somente um ingênuo para achar que o povo ignore o que tem se passado nas ruas de Lisboa nesses últimos dias. Não só sabem como parece que alguns ousaram se rebelar: correm notícias de que andaram atirando pedregulhos e toda sorte de coisas sobre as carruagens dos nossos. Ontem mesmo meu mensageiro particular informou que saquearam os pertences do filho de Cidinha de Mattos Araújo, da Confeitaria Trás-Os-Montes, esposa de Vicente de Araújo, Barão de Beja. E olha que eles nem sabem se vão conseguir embarcar, coitados...         
– Nessas circunstâncias relatadas, Sua Majestade cogita afixar nas ruas de Lisboa um conciso decreto aos queridos súditos, explicando-lhes que as tropas inimigas estão a caminho da capital, e que resistir às mesmas é derramar sangue desnecessariamente. O que acha da ideia, conselheiro? O que mais posso dizer? – levantou as enormes sobrancelhas, sem deixar de tirar os olhos de mim.
– Hum...Vossa Majestade pode também destacar que, a despeito de todos os esforços empreendidos por Vossa Majestade, lamentavelmente não teve êxito em preservar a paz para os seus amados súditos e, por essa razão, a corte está de mudança para o Rio de Janeiro – improvisei. – Que partimos escoltados pelo esquadrão inglês, nossos aliados. Ah, e seria bom Vossa Majestade também apregoar como o povo deve tratar os invasores...que seja gentil com eles, apesar de tudo. Afinal, o que se quer é preservar a paz e poupar o máximo de vidas...
– Tudo isso é muito romântico, mas duvido que algum patrício vá estender a mão para esses desgraçados quando eles invadirem suas casas e molestarem suas mulheres – cogitou a princesa.
– Permita-me discordar, Alteza – ousei. – Mas não creio que Napoleão pretenda massacrar vosso sofrido povo, o alvo é a Casa de Bragança. Atrevo-me até a dizer que ele quer corromper a todo custo vosso povo, colocá-lo contra vós e conquistar sua simpatia, o que facilitará seu plano megalomaníaco de expropriação de toda a Europa e queda definitiva do império inglês.
– De onde surgiu esse burro de carga com ideia tão mirabolante? – indignou-se a princesa. – Quem és tu para emitir opinião tão estapafúrdia? Aliás, o que faz aqui nos aposentos do senhor meu marido, além de servir-lhe essas repugnantes coxinhas de galinha assada?
– Sua Majestade quer que diga a essa distinta senhora que és tão somente o encarregado, particular e de plena fé de Sua Majestade, pelo transporte e escolta de todo o tesouro da corte – seus olhos arregalados continuavam me encarando enquanto emitia um sorriso irônico.
– E também da prataria das igrejas...e do acervo da Real Biblioteca... aliás, se Vossas Majestades me permitem, peço licença para verificar em que pé estão essas bagagens – disse, retirando-me apressadamente.
Na tarde daquele 27 de novembro a família real partiu para o porto de Lisboa. Para não chamar a atenção e evitar maiores manifestações de protesto, por minha sugestão, seguiram distribuídos em distintas carruagens fechadas, e fizeram caminhos diferentes até as docas – ainda assim o carro de Dona Carlota Joaquina não escapou da ira de alguns rebeldes, que atiraram ovos sobre ele, sendo que dois atingiram o cocheiro e um o cavalo.                        
Sob olhares desconfiados ao longo de todo o longo e tortuoso trajeto, Dom João – como de resto, toda a família – chegou enfim são e salvo ao porto, tão a salvo que, apesar de uma pequena multidão ter se aglomerado no cais para assistir à partida, não havia quase ninguém para recebê-lo – com exceção de alguns poucos bêbados que estavam mais preocupados em tentar embarcar do que prestar atenção naquela figura grotesca que saía cambaleando da carruagem, apoiado por mim e por seu sobrinho Dom Pedro Carlos, sobre pranchas de madeira mal colocadas no charco.
Ainda assim o príncipe, com pernas trêmulas e lágrimas nos olhos, concedeu um frio beija-mão para os presentes antes de entrar na Príncipe Real. No embarque, que acompanhei de relativa distância, Sua Alteza ganhou a companhia da mãe, Dona Maria, de quem ainda ouvi sussurrar:
– Vamos penetrar com discrição, meu filho, para que não pensem que estamos fugindo!
Devido ao péssimo tempo não puderam partir imediatamente. As cerca de mil e duzentas pessoas – além de toda a família real, diversos membros da nobreza e prósperas famílias portuguesas embrenharam-se nas pequenas e desconfortáveis embarcações – tiveram ainda de esperar dois dias para partir: apenas na manhã do dia 29 de novembro, quando o vento mudou de direção e passou a soprar do continente para o mar, é que o comandante da esquadra britânica, mister Sidney Smith, autorizou a retirada.
O espetáculo foi acompanhado por uma enorme quantidade de desesperados súditos. Muitos choravam copiosamente quando as embarcações deixaram a barra do Rio Tejo para entrar no Oceano Atlântico, sob os longínquos e frustrados olhares das tropas francesas, já nas montanhas das redondezas.
Acho que ninguém reparou que eu também estava ali, no meio da multidão, com uma satisfação estampada no rosto. Ergui na mão esquerda uma taça de champanhe, surrupiada do Palácio de Queluz, quando a esquadra inglesa saudou com vinte e um tiros de canhão o pavilhão real da nau que conduzia o príncipe regente.
Na mão direita, segurava um pequeno saco com umas vinte pedrinhas de diamante pertencentes ao tesouro real, extraídas de Minas Gerais e que, ao contrário de suas iguais, não retornaram para o Brasil – com a confusão e correria generalizada da partida, consegui fazer com que essa ínfima e quase insignificante parte do patrimônio real não embarcasse, ficasse esquecida em caixotes espalhados pelo cais do porto, junto com toda a prataria das igrejas.  
Naquele momento eu também saudava o príncipe, desejando-lhe honestamente imenso sucesso em sua inédita empreitada na gigante colônia de além-mar, e em particular agradecendo-lhe por poder eu, da mesma forma, partir com tranquilidade para uma nova aventura, fosse em além-mar ou em qualquer outro lugar.

Lui França
₢ Todos os direitos reservados.

Comentários

Postagens mais visitadas